sexta-feira, 31 de julho de 2009

Fazem Rugas


Que sabemos nós do mistério que cada um trás dentro de si?

Interrogava-me porque é que uma mulher bonita como aquela e sempre bem vestida, nunca sorria. Nunca entendi se era ela que se marginalizava do resto dos colegas ou se eram estes que a marginalizavam.
Eu tinha dezoito anos, terminado o Liceu e saído há três ou quatro meses de um colégio de freiras. Tinha do mundo uma ideia cor-de-rosa, onde todos eram amigos e se davam bem. Moralmente possuía uma estrutura forte e sabia o que queria da vida. Não sabia bem qual era o caminho e como seriam esses caminhos para chegar até onde me fosse permitido. Faltava-me experiência na mesma medida em que me sobrava alegria e muitos ideais. Mas foi precisamente esta alegria e simpatia que me abriram muitas portas. Sempre tive facilidade no relacionamento com os outros. Amava por demais a vida e as pessoas para ser de modo diferente. A pior economia do mercado da vida é a economia no amor, na amizade. Os afectos são necessários para crescermos. Todos nós precisamos de um colo para chorar, de braços que nos levantem quando caímos e mãos que nos aplaudam quando for a hora do êxito. Estranhava pois aquele afastamento tacitamente imposto por todos àquela colega e como garota que era perguntava abertamente como fazem os “miúdos”:
- Vocês não gostam da …… porquê?
As respostas vinham evasivas e meio enviesadas:
- É uma petulante, já reparaste que não cumprimenta ninguém e não dá um sorriso?
- Como podem saber se vocês também não falam com ela?
Nunca fui de desistir e pensava que muitos já tinham entrado num processo de derrocada em termos de análise dos outros. Era mais cómodo aceitar o “diz que disse” e ficar no seu lugar sem remar contra a maré. Dá muito trabalho…
Um dia encontrei-me com ela “casualmente” quando íamos tomar um café.
- Bom-dia. Sou uma nova colega e ainda só a conheço de vista. Trabalha na …… Secção, não é? Eu estou na Contabilidade.
Olhou para todos os lados a ver se havia mais alguém ou se era com ela mesmo que eu falava. Ciente de que era com ela fez-me um esgar e seguiu adiante. Atrás as outras colegas aperceberam-se do meu fracasso na abordagem da Miss Esfinge e riram-se:
- Esquece, não vais conseguir nada dela, é a rainha cá do sítio.
Enquanto trabalhava pensava numa certa insegurança que notara na Miss Esfinge e até alguma tristeza no olhar. Aquilo ficou a remoer dentro de mim.
No dia seguinte, abri a porta da secção dela, cuja secretária ficava em frente e perguntei-lhe:
- Quer vir tomar um café comigo?
Mais uma vez olhou para os lados a ver se haveria alguém a quem o convite pudesse ser dirigido. Acabei logo ali com qualquer dúvida:
- Venha ……
Olhou-me espantada mas com um brilho diferente no olhar. Voltou a fazer o esgar que já lhe vira no dia de trás e respondeu-me:
- Vou sim, com muito prazer!
Bem, ao menos não é muda, pensei eu! Conversou muito bem, disse-me que era casada e tinha uma menina com seis anos e abriu a carteira e mostrou-me a foto da filha.
- É muito bonita e parecida consigo.
- Acha? - E o rosto estava limpo de nuvens, brilhante como sol de primavera.
Quando regressamos ao trabalho ela disse-me:
- Amanhã espero por si no café mas não me trate tão cerimoniosamente. Chame-me apenas …... e eu a si vou chamar-lhe Gracinha, se não se importa pois é uma miúda ao pé de mim.
-Claro, claro. - Concordei de imediato.
À saída do serviço estava à minha espera junto de uma valente máquina.
- Reparei que não tem carro e que é o seu pai que a vem buscar, mas hoje não o vejo por aqui…
- É, ele nem sempre me pode vir buscar e a minha casa também não fica longe…
- Ah, mas está muito calor (saíamos às 13 horas) o meu marido não se importa de passar por sua casa.
Apresentou-mo. Era um homem ainda novo, simpático e atencioso.
Durante a tarde, de vez em quando pensava na …… Não vislumbrara nada de complicado na sua vida que fizesse ter aquele ar tão trombudo. Ou seria eu quem não conhecia as pessoas?
No dia seguinte disse-me:
- O meu marido achou-a muito bonita e simpática.
Aproveitei logo:
- Ah sim? A …… também é muito simpática, só lhe falta um sorriso. Porque não sorri?
- Vou contar-lhe um segredo! - Afinal sempre havia algo de complicado na sua vida, pensei eu.
- É que sabe, rir faz-me muitas rugas e eu tenho de me poupar…
Não pude esconder uma boa gargalhada.
- Então é por isso? Já reparou que o esgar que faz ao cumprimentar as pessoas estende os lábios e em breve vai ter rugazinhas à volta deles? Ria, sorria, é bonita, tem uma família maravilhosa que mais quer? Viva feliz!
Quando entramos no café, ela parecia uma rainha a distribuir sorrisos por todos os lados. Os colegas estavam estupefactos:
- O que é que fizeste à múmia?
- Olha, disse-lhe que as múmias normalmente têm rugas e ficam encarquilhadas.
- Estás a brincar?!? – Perguntaram atónitos.
- Claro, que te parece? – Respondi eu sorrindo.
A partir daí os sorrisos eram canções, trigo lançado com a mão larga da generosidade e da compreensão por todos e entre todos. Algum tempo depois ela foi transferida para a Beira mas mantivemos sempre correspondência até àquele momento em que nos perdemos uns dos outros.
Nunca mais soube nada dela mas penso muitas vezes nesta mulher que não ria porque não queria envelhecer. Eu, que cultivo constantemente a sementeira do sorriso, costumo dizer que a vida nos devolve aquilo que lhe damos: quanto maior for o nosso sorriso, do outro lado a retribuição será, quem sabe, o próprio sol!


Rugas

Se ficasses para sempre
nos olhos que em ti medi
naquele balouçar
de vestal e puta eternamente
serias o sonho prolongado que não há
Mas os anos amiga
os anos que passaram
fizeram de borracha a tua pele
e o desespero das rugas
enfeitou o teu rosto
num rasgo de ti mesma
E desdobras-te em cascatas de gestos
em busca do que foste sem saber
e há qualquer coisa de injusto em tudo isso
porque os meus olhos são da mesma idade
E o tempo esse carrasco lento
fez de nós uma referência
uma memória esconsa do que fomos
E hoje são talvez as tuas filhas
quem desdobrou de ti o alçamento
a graça de garça e o altar de espanto
Mas tu amiga
aqueles teus seios de mármore
que eu mordi de amante
esses roubaram-mos de inveja
o tempo e a lonjura
Por isso recuso ver-te hoje
sem ser nessa memória
Dizem que é assim isto de viver
mas há tudo de cru, injusto e triste
nessa amargura
porque a beleza extrema
nunca houvera de morrer
E tudo o que me estrago
a mim não magoa
que eu nunca contei muito
para o belo que me deste
Sempre vou ser isto
mais coisa menos coisa
cada vez mais velho e mais agreste
Mas tu tinhas direito à eternidade
o teu rosto o teu corpo as tuas mãos
moram para mim ainda e sempre
na ideia em que te guardo
e há qualquer coisa de injusto em tudo isto
porque os meus olhos são da mesma idade

[Pedro Barroso]


quarta-feira, 29 de julho de 2009

Rissóis

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Há pessoas que são como os rissóis dos cafés: uma perfeita desilusão.
São uma dor de cabeça para toda a gente: para quem os compra(que não voltará jamais ao estabelecimento), para quem os vende (que ouvirá as reclamações dos mais ousados consumidores), para os cozinheiros (que não tinham a intenção de fabricar tão malogrados pastéis) e para a generalizada classe de rissóis (que se vê ofendida por incompetentes representantes).

Há não muito tempo, cobicei um amigo, tal e qual um rissol de um café. Minto se disser que ele não me atraiu. Estarei a aldrabar descaradamente se disser que ele não estava perfeitamente recortado e estaladiço. Não era verdade se o acusasse de escorrer óleo, sujo e gorduroso, tal e qual aperitivo indigesto de uma tasca pitoresca.
Comprei-o. Na altura, nem sequer provei. Nem me passava pela cabeça que talvez não gostasse do sabor. Doseei a minha gula de o tragar de uma só dentada. Petisquei-o, maliciosamente. Tentei-o ao sabor dos meus lábios. Criei uma mútua ligação de expectativas.

Desiludi-me. A massa dourada e apetitosa fartou-me. Começou a ser demasiado espessa e desinteressante. O recheio tardou. E quando, finalmente, me dispus a saboreá-lo, era já muito tarde. Azedou.

Provavelmente, ele desiludiu-se. Porque pensaria, talvez, que eu soubesse o que comprara. Acreditava que o meu apetite jamais findaria e que eu seria incapaz de me desfazer dele. Enganou-se.
Como sou uma pacífica consumidora, não faço barulho por reclamações inconsistentes. Está visto que não tornei àquele café. Nunca mais vi quem me vendeu o rissol. Mandei uma receita aos infelizes cozinheiros: pastéis mais humildes e pequeninos, pouca massa, pouco óleo, muito amor e mais recheio. Generalizada a situação, perdi o apetite por muitos desses fritos. Mudei os meus hábitos alimentares: como saladas. Ao menos, não têm óleo. Nem massa. Não engordam e não prejudicam a saúde.

E, acima de tudo, são o que aparentam ser.

Isabel Pinto Pereira

Fotos do Álbum da Regina (II)

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1962 - Recordação dos professores e colegas do antigo Liceu Nacional.

5 de Maio de 1963 - Almoço dos quintanistas do Liceu Nacional. (em primeiro plano, da esquerda para a direita: Barcelos, Regina, Junqueiro, Lucinda, Leitão Marques; em segundo plano, da esquerda para a direita: Burnay, Bebé Salgado Freire, Luis Burnay, Pessoa e Costa.

1965 - Baile dos Finalistas do Liceu João Azevedo Coutinho; o meu pai e a minha mãe abrindo o baile com os reis dos finalistas.

1965 - Coroação do Rei dos Finalistas, Rui Velasco.

1965 - Coroação da Rainha dos Finalistas, Fátima Esteves.

1961 - Discurso de abertura do Liceu de Quelimane pelo Reitor Dr. Val Costa. À direita do Reitor o então Governador da Zambézia Manuel Farrajota Rocheta.

Na praia do Madal com os meus pais e um grupo de amigos.

17 de Abril de 1964 - No meu aniversário dos 16 anos a dançar o Cha Cha Cha.

1963 - Sábado de Carnaval no Sporting, mascarados de Charleston.

Nota: Legendas da autoria da Ragina Val Costa com algumas adendas minhas.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

A Marginal

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Na pérgola começava a Marginal.


A Marginal… bem, a marginal era um pequeno reino dentro da cidade. Tinha o seu início na curva junto ao quartel, defronte à belíssima pérgola deitada sobre o rio dos Bons Sinais de onde se espraiava o olhar até à foz, aguardando os navios que chegavam ou dizendo adeus àqueles que partiam, e terminava após os seus 3Km (quase) na praça D. Infante Henrique, tendo em frente o edifício da Alfândega. Claro que poderíamos começar por aqui e terminar na pérgola. Tenho a certeza que o gozo seria o mesmo e a magia em qualquer ponto deste percurso nunca faltaria. Aqui tudo acontecia: acenava-se a dizer adeus e punham-se os sonhos ao sol ou ao luar para desabrocharem como flores de primavera. Por madrinha, Nª Sª do Livramento na velhinha Igreja do séc. XVII que, do alto da escadaria, despachava todos os pedidos, principalmente os de amor.

Igreja de Nossa Senhora do Livramento, palco de tantos acontecimentos na vida de todos nós.

Quando as vidas começavam...

Aos domingos ouvíamos a banda do Pe. Francisco no velho coreto do jardim da piscina. Mesmo depois de já não haver coreto a banda continuou a embalar os corações apaixonados dos pares de casais que, de mão dada, suspiravam pelo seu sonho mais íntimo.
Os mais velhos procuravam a frescura da secular árvore onde, segundo rezavam as lendas, Vasco da Gama teria amarrado uma das suas naus devido à grossura do seu poderoso tronco. A verdade é que os bancos à volta dela eram dos mais disputados… por ser um local estratégico, perto de tudo, ou então porque os ventos por ali eram felizes, capazes de tornarem reais as ilusões de cada um.

Por aqui passaram procissões e mais procissões com santos e anjos de verdade, enquanto o povo respeitosamente ajoelhava e rezava.

A procissão entrando pela Marginal. Muita gente conhecida aqui vai. Éramos então uns garotos. (1946)

Nossa Senhora dos Anjos (claro que Nossa Senhora era eu!) E os anjos, vejam se descobrem: Manuela Costa, Angelina, Augusta, Zamira, Eduarda, Odete...

Um anjo desordeiro fugiu da procissão, e para disfarçar pôs as mãos em oração.

Por aqui passaram corsos carnavalescos sambando alegremente porque Quelimane era a capital do Carnaval em Moçambique.


O início do corso carnavalesco de 1970. À frente esta monumental baleia.

Os pescadores, depois da faina, a festejarem com o tintol...

Carro do Chá Li-Cungo.

Carro da D.E.T.A.

Carro da Mercedes-Benz.

Carro dos C.F.M.

Por aqui os carros roncaram em rallies, corridas, caças ao tesouro e ainda fora de horas e sem horas, os “Fângios” mostravam (ou não) o poder das suas máquinas.

Um dos muitos rallies que tinham lugar na cidade do Chuabo.

Uma das caças ao tesouro em que participamos.

Por aqui desfilaram com garbo os rapazes e raparigas da antiga Mocidade Portuguesa.

Por aqui e aqui nós crescemos!
E quantas histórias não vivemos nesta marginal que cada um julgava ser apenas sua? Quantas madrugadas esperando o nascer do sol, como se fosse uma flor imensa de fogo de um novo dia com respostas às perguntas enroladas com o casaco que serviu de almofada nessa noite? Quantas serenatas pensadas e treinadas na escadaria da velha igreja com destino rotulado a tantos amores, de tantas canções? Quantos sonhos, quantos caminhos não nasceram aqui, mesmo sem sabermos se seríamos capazes de seguir em frente?

Um dos três jardins da Marginal, junto à Madal.

Quantas gargalhadas não deixamos penduradas nos jardins da marginal? E quantas lágrimas não lançamos ao rio quando sufocávamos com a dor e o sofrimento?


Vista sobre o Rio dos Bons Sinais.

Aqui foi princípio de jornada de muitas vidas a dois. Aqui foi caminho de companheirismo e amizade que se estendeu como o rio até ao mar… Aqui há sombras dos nossos passos, ecos de tantas palavras de amor, sulcos de desabafos sem fim…

Sim, a marginal era um caso à parte… um pequeno reino encantado, com fadas, duendes e magia… talvez heróis, santos, os derrotados da e pela vida, os sem histórias para contar e os simples autenticamente sonhadores.
Reconfortados com a brisa fresca que vinha do rio, regressávamos tantas vezes a casa mais afoitos, capazes de pintar a vida com outras cores. No fim a marginal realizava pequenos milagres de pequenos nadas que todos trazem dentro de si: bondade, palavras de conforto, ânimo e solidariedade.


Avenida Salazar, atrás da qual ficava a Marginal.

…a noite estava por demais quente e abafada. Na varanda, tantas vezes pequeno oásis de frescura, não chegava a mais pequena aragem. A mangueira, ao lado, parecia coberta de folhas estáticas, com mil braços por entre a ramagem erguidos ao céu como uma imagem dantesca. A chuva tão anunciada demorava em chegar e o calor fazia baixar as nuvens e prensava-nos sem dó nem piedade.

-Vamos até à marginal! Pelo menos ali correrá alguma brisa vindo do rio. – Era um convite, quase uma ordem do meu pai. Não esperamos pela segunda palavra. Desejávamos o mesmo: um ventinho fresco que nos sossegasse o corpo e nos desse uma noite tranquila de sono.
A marginal estava cheia de uma ponta à outra com pequenos grupos aqui e acolá, ansiosos pela frescura que não tinham em casa. A esplanada do velho Refeba (a antiga) rebentava pelas costuras. O Garrido comandava o batalhão de empregados que rodopiavam como uma ventoinha a distribuir cerveja e refrigerantes geladinhos pelas mesas entulhadas de gente.
Quando aqui já não havia lugar, pegávamos nas garrafas e sentávamo-nos no muro sobre o rio com vontade de estendermo-nos sobre o mesmo e passar ali a noite. A maré estava a subir e sentíamos o murmúrio do rio a entrar pelo mangal dentro.

- Daqui a pouco tempo o rio chegará àquela marca - Dizia-nos o meu pai apontando para um pequeno poste de ferro. Olhamos a confirmar o local e de repente vislumbramos uma grande superfície branca enfiada no lodo.

- Alguém deixou cair ali um lençol quando se preparava para fazer a cama aqui em cima do muro - Alvitrou o meu primo. Rimo-nos todos. Mas aquele pano branco continuava a despertar-nos curiosidade. Inclinamo-nos para observar melhor.
-Vi mexer, vi mexer! - dizia o meu irmão convictamente.
- Está aí alguém? Está-me a ouvir? – Gritava o meu pai fazendo concha com as mãos.

Do outro lado vieram dois roncos a confirmar que o meu irmão tinha razão.
- Ó homem, é você o ……? Como é que foi parar aí?
- Tragam-me mais uma cervejinha e geladinha…

- Gelado está você daqui a pouco e para sempre se o não tirarmos daí.
- Que fazemos? - Perguntávamos à volta do meu pai.
- Fiquem aqui e vão falando com ele, enquanto eu vou com o Zeca ali ao Garrido pedir-lhe uma corda.
Quando chegaram ao Refeba e contaram o que se estava a passar o Garrido disse logo: é o …. saiu daqui bêbado que nem um cacho e eu logo pensei que se ele se sentasse no muro ainda iria cair ao rio. Vamos lá tirar esse desgraçado.
- Ó … está a ouvir-me? Perguntava-lhe o meu pai.
- Então a minha cerveja nunca mais chega?

- Deixe lá a cerveja, bebe depois quando estiver cá em cima. Vamos atirar-lhe uma corda e você passa-a por debaixo dos braços e nós içamo-lo daqui.

Quando a corda chegou ao mangal, o homem tentou endireitar-se passando a corda à volta do pescoço.

- Ó homem não é aí. Se não em vez de morrer afogado morre enforcado!
A operação durou mais de uma hora. Quando o içaram, já a água lhe batia nas pernas. Vinha cheio de algas, com pequenos caranguejos do matope pendurados por ele abaixo, tresandando a pipas de cerveja. Deitaram-no no passeio e limparam-no o mais que puderam.
- Agora vais dormir aqui ao relento que o cacimbo da madrugada vai deixar-te fresco que nem um alho - Dizia-lhe o velho Garrido. Pareceu reconhecê-lo e reclamou mais uma vez:
- Veja se me trás a minha cervejinha!!

…Histórias, muitas histórias a marginal contaria se pudesse falar. Esta, por acaso, teve testemunhos… Talvez um dia vos conte outras!

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Dia do Amigo


A Quem comigo vai

E o dia veio, trémulo por entre as sombras
A princípio frágil no seu rugido de luz invisível

Como o início de um discurso de fala muito lenta.


Digo para quem comigo vai:
Aí o tens como um sulco por semear.
Sê hoje feliz. É-me absolutamente necessário que o sejas.

Desperta, lava de luz o teu rosto.

Que os teus olhos impregnem de vida os que te estão próximos.
Se necessário, imita os pescadores
Cantarola baixinho uma canção que afaste a morte e o medo no alto-mar.

Vive este dia a prumo
Sem medo da agenda que carregas pesada pelos dias.


Seja hoje outro o teu riso; a tua alegria tão real
Que as próprias aves te confundam com a primavera.
Reaprende o sabor dos frutos e o sabor dos gestos repetidos;
Reaviva as brasas das tuas ilusões, ilusões embora,
Contanto que sejam afluentes dos teus sonhos.


Que mesmo a água arda e se derrame em incêndios de alegria;
Foi com este fogo que Ele nos mandou incendiar o mundo.
Mais logo quando o sol exausto adormecer

Possas dizer: valeu a pena!
Digo para quem comigo vai:

Aí tens este
dia como um sulco por semear.
Sê hoje feliz. É-me absolutamente necessário que o sejas!




Henrique Manuel
In, Mas Há Sinais, Edições Paulinas

domingo, 19 de julho de 2009

Carta Aberta


Hoje é o dia do teu aniversário, parabéns Mãezinha! Já reparaste que conjugo o verbo no presente… porque não há pessoa mais presente na minha vida do que tu!

Não quero que seja apenas mais um aniversário. A azáfama de anos passados não é a mesma, é certo, mas há emoções que não se esquecem e enfeitam na mesma este dia.
Como gostavas de festejar a vida! Terei herdado isso de ti? Talvez… Nunca nos importamos de fazer anos e muito menos de os festejar. Como recordo a tua ansiedade, era difícil retê-la! Parecias uma criança… Na véspera convidávamos-te disfarçadamente a deitares-te mais cedo. Convinha aos nossos planos. Tu fazias de conta que não entendias nada e prolongavas o nosso suplício.
- O quê, deitar-me tão cedo? Está uma noite tão bonita e está-se bem aqui na varanda…
Entrávamos em desespero. Não podíamos dizer-te que precisávamos de tempo e espaço para os preparativos. Acredito que por dentro tu soltavas gargalhadas face à nossa aflição. Por fim, talvez com pena de tanto sofrimento, lá ias dizendo:
- Têm razão, está a ficar um pouco tarde, vou deitar-me!
Lentamente, para moer a nossa paciência, ias à casa de banho, à cozinha buscar um copo de água e nós atrás em procissão cautelosa… De repente voltavas atrás quase atropelando-nos…
- Será que o tabuleiro da carne para assar ficou tapado?
Subíamos pelas paredes… Finalmente a porta do teu quarto fechava-se. Ficávamos à escuta até deixarmos de ouvir o último ruído. Dávamos mais algum tempo porque contigo nunca sabíamos….
- É agora! – Corríamos aos nossos quartos e de debaixo das camas tirávamos montes de embrulhos feitos com inúmeros malabarismos para mantermos a onda do secreto.
Colocávamos tudo à porta do teu quarto, do lado de fora, deixando apenas um pequeno espaço para que pudesses abrir a mesma no dia seguinte. Nunca soube se conseguias dormir nessas noites… Nós passávamos apenas pelo sono, ansiosos que fosse dia. Eras o galo da casa. Mal o primeiro raio de sol entrasse pela janela do teu quarto, já tu sacudias os lençóis para trás e vestias o roupão. Ouvíamos então um barulho e a tua voz feliz a dizer:
- Mas o que é isto? Puseram aqui uma loja? - Surgíamos a seguir cantando e com ramos de flores nas mãos. Era o alvoroço total. A partir daí o telefone não parava de tocar, as prendas iam chegando ao longo do dia trazidas pelos empregados das tuas amigas. Houve um ano que chegaste a ter quatro bolos de aniversário. Lembras-te? E não é que quiseste apagar as velas de todos eles? Nós já não tínhamos fôlego para tanta cantoria… Um grupo de amigos trouxe para o jantar de festa uma caixa enorme com mais de um metro de altura, embrulhada a preceito e com uma grande etiqueta: “FRÁGIL!” Levaste mais de uma hora a desembrulhá-la porque dentro, havia outras caixas, sucessivamente mais pequenas, para desembrulhar… uma, duas, três, quatro, cinco… e por aí fora até a uma minúscula caixa que não teria mais de dez centímetros:
- Cuidado, aí é que está a jóia… - Avisavam!
Nova expectativa e zás… sai de lá de dentro uma pequena chupeta com um lacinho cor-de-rosa! Gargalhada geral.
Quando te ias deitar, cansada mas feliz, dizias:
- Que pena ter acabado!
- Deixa lá Mãe, para o ano há mais…
Mãezinha já te deixei as flores que tu gostas no lugar que sabes, mas é no meu coração que hoje festejo o teu aniversário. Caminho até à minha juventude para te encontrar e vejo-te de tantas maneiras… Contigo aprendi o que era coragem, aprendi a lutar no meio das maiores dificuldades, aprendi a aceitar o sofrimento generosamente… Tu foste, tu és, aquela árvore frondosa que nunca me negou apoio e o colo para eu chorar… Tantas vezes a borrasca caiu sobre a nossa casa mas tu arrastavas-nos para o sol através dela. Tanta cumplicidade entre nós, tantos projectos sonhados a meias… Obrigado pelo teu amor, pela tua fé na vida. Obrigada sobretudo pelo teu testemunho de ânimo e força. Afinal, as árvores morrem de pé!
Parabéns Mãezinha!

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Uma Aventura em Moçambique


Setembro chegava ao fim e os dias tornavam-se maiores, mergulhados num calor que, dentro de pouco tempo, seria sufocante. Por isso, decidimos que a nossa partida teria de ser muito de madrugada, quase de noite ainda; aliás como sempre acontecia nas longas viagens de carro pelo interior de Moçambique. Esperavam-nos 1600 quilómetros entre Quelimane, na Zambézia, até à capital Lourenço Marques (actual Maputo), no sul do Save.
Antes de nos deitarmos, tudo ficou pronto: bagagem, cesto de merenda, garrafões com água e um de gasolina, para além do imprescindível mapa, onde uma linha sinuosa ressaltava o itinerário de uma grande aventura. Viajamos num cómodo Datsun 1200! Até aos limites da Zambézia a viagem foi normal – eram estradas por demais conhecidas. Ao embrenharmo-nos na densa floresta tropical, numa grande extensão ainda virgem, começaram as peripécias. A estrada de terra batida ou de areia solta grossa semelhante à do deserto era percorrida quase em silêncio. Durante muitas horas não nos cruzamos com ninguém. Devido à vegetação cerrada, zona de caça grossa, e ao período de guerra que se vivia, as aldeias indígenas não existiam, razão pela qual não víamos vivalma. Passávamos assim pela onda do medo. De repente, no meio do colchão de areia fofa da estrada foram aparecendo aqui e ali garrafas de cerveja Manica – cheias e bem engarrafadas. Foi uma alegria e enchemos a bagageira com a loira bebida. Mas, alguém alvitrou – “e se é uma armadilha?”. Fez-se um pesado silêncio que reinou até encontrarmos depois de mais de 200 quilómetros por floresta, uma cantina (loja do interior) onde nos abastecemos de tabaco e água.

À porta, bem arrumadinho, descarregava um camião da Manica. Estava explicada a sementeira de tanta garrafa. Com os saltos, algumas grades rebentaram e deixaram cair o seu produto no macio da estrada, não dando sinais ao motorista do que se passava.
Depois de deixarmos Inhaminga a chuva começou a cair torrencialmente. Em breve, o que era veludo passou a ser um inferno lamacento. Mais à frente, quatro ou cinco camiões altos e potentes atolavam as suas grandes rodas sem conseguirem sair do sítio onde estavam. Tal como elefantes pesados e pouco maleáveis, quanto mais os motores roncavam mais as suas “patorras” se afundavam. Ficamos em pânico. Com um carro baixinho e sem a estatura dos outros, que seria de nós? Conseguimos abrir as portas e a água correndo como um rio ficava ao nível do nosso “vermelhinho”. O nosso condutor, também ele experiente de muitas viagens pelo interior, pisando o pé no acelerador soltou o grito do Ipiranga: “Agora ou nunca”! Acreditei que iríamos ser inundados e o carro se quedaria sem movimento, agarrado ao lodaçal como uma lapa. Foram os minutos mais sufocantes da minha vida. Quando abri os olhos, o Datsun estacionara triunfante por cima de uns caniços numa zona mais alta e seca da estrada. Toda esta gincana em poucos segundos, foi acompanhada por palmas dos motoristas dos camiões que nas suas ilhas flutuantes esperavam pelo rebocador.
Já era muito de noite quando pernoitamos em Vila Machado, numa residencial simples e parca em tudo. No entanto o jantar soube-nos como o melhor dos banquetes e a cama foi um pequeno oásis onde o cansaço deu tréguas ao sono.
Por ser feriado, avisaram-nos que poucas lojas ou restaurantes encontraríamos abertos para almoçar; Mas, à socapa, no jantar de véspera, três pãezinhos com bacalhau cozido e um ovo entraram num saquinho de plástico, para o que desse e viesse.
Deixara de chover e o sol estava outra vez no seu pino. Começamos a racionar a água. Às três da tarde a fome era por de mais dolorosa e foi aí, nesse momento, que, umas simples sandes de bacalhau (algumas lascas) e uma rodela de ovo cozido foram consideradas o melhor manjar do mundo.
Ao fim da tarde, encontrávamos civilização – Vila de João Belo – onde nos dessedentámos com o pouco que havia disponível. “Comam tudo o que puderem pois só pararemos em Lourenço Marques” – um conselho prudente do motorista. Já a noite ia alta quando passamos pela terra da boa gente (Inhambane) e às 23h00 fazíamos a entrada triunfal em Lourenço Marques. Depois de vários enganos, metemos pela Avenida de Pinheiro Chagas ao encontro do nosso destino.
Já lá vão trinta anos e nunca mais pude esquecer esta viagem, que foi uma aventura inesquecível.
Maria de Graça Machado
In, Público, 18-5-2002

domingo, 12 de julho de 2009

Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil

(foi há um mês mas devia ser todos os dias...)


Naqueles dias
Em que o peso do dia
Parece querer esmagar

Teu corpo de criança
Feito adulto….
Naqueles dias
Em que a angústia,

A dúvida e o medo
É o pão que comes;

Naqueles dias

Em que te roubaram
A paz e a alegria
E no teu olhar só há trevas...
Nesses dias e sempre
Eu queria abraçar
Teu corpo de criança
E dizer-te que existe alguém
Capaz de te amar
Que chora contigo
No silêncio da tua vida
E que hoje pede ao mundo
Que não feche os olhos
E com todo o coração
Ajude a semear nesse campo
Onde tu deixas o teu sangue,
A flor da esperança,
Porque tu tens direito a ser

CRIANÇA!



sábado, 11 de julho de 2009

Rosas


Gosto de rosas! Rosas simples, dobradas ou singelas. De todas as cores já se vê. Existem inúmeras espécies de rosas, com tonalidades e estruturas diferentes. Dependem do terreno onde estão e da mão do homem que, num trabalho delicado e minucioso pode obter milhares e milhares de variedades. Mas as rosas que mais gosto são as do meu jardim! Salpicaram de todas as cores o verde da sebe e brotaram pujantes numa quantidade nunca vista por mim, no mês de Maio e agora em Junho. Gosto de todas elas mas tenho particular carinho por uma, quase negra, cujas pétalas são espessas como o veludo. Era também a preferida de alguém que já partiu. Quando à tardinha me sento no banco do meu jardim não calculam os diálogos que mantenho com ela. Cativou-me tal como a rosa ao Principezinho de Saint-Exupéry. E é também exigente como a rosa do livro.
- Quero que me protejas do Sol! Não deites água a mais nem a menos... Olha como a relva já cresceu ao meu redor... - Que saudades de outros tempos! - Sabia o que ela queria dizer mas não lhe dei ouvidos.
- Quero crescer como a rosa branca e ver o Mundo para lá da sebe. - A Rosa Amarela mesmo vizinha da presunçosa disse-lhe:
- O que queres tu ver? – Não te chega a paz deste jardim, a sinfonia dos passarinhos que poisam na relva e os gemidos do chorão em noites de prata!?
- Só gostava de conhecer mais um pouco de tudo. Há algum mal nisso?
- Claro que não! Interrompi antes que a conversa se azedasse. Compus o canteiro, tirei-lhe as ervas que ela não gostava e deitei-lhe água com carinho. Numa das suas pétalas maravilhosas ficou apenas uma gotinha, límpida como uma lágrima de cristal, onde os raios de se Sol se multiplicavam como um pequeno arco-íris.
- Obrigada. E depois numa voz sumida, perguntou:
- Estás triste?
- Não, que ideia; apenas saudosa...
- Compreendo - atalhou depressa. Também eu sinto saudades, tu acreditas que as flores têm sentimentos?
- Claro, porque não?
- Sabes porque fiquei aqui, mesmo defronte do banco onde te sentas todas as tardes?
- Não. Talvez porque era o sítio mais abrigado e tu eras a mais preciosa...
- Também. Mas deixaram-me um recado para to dar todas as vezes que te visse triste e daqui posso olhar sempre o teu rosto e sentir a tua alma.
- E então?
- Ele disse-me – Quando a vires triste e com os olhos orvalhados, alegra-lhe o espírito com a tua cor e a tua beleza e diz-lhe ao compasso do vento – Sê feliz, Sê feliz, Sê feliz...

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Fotos do Meu Álbum


Ontem… éramos assim.

Hoje… Apenas passou um dia…
Continuamos Jovens!


Em pé, da esquerda para a direita: Camacho, Casimiro (Cofió), ?, ?, Duarte (fotógrafo), Mário Augusto, ?, Quintino;
Sentados, da esquerda para a direita: Mário Viegas, Tochinha, Toninho Vítor, Francisco Sales.

O Casamento da Minha Amiga


Recebi há dias num bilhetinho muito lacónico, a participação do grande acontecimento – a minha amiga casara-se! É claro que fiquei feliz com a notícia pois se eu conhecia tão bem o José Manuel, um rapaz de belíssimas qualidades, com um grande futuro à sua frente, um verdadeiro “achado” com se costuma dizer! Sim, era evidente que o romance da minha amiga tinha tido um epílogo feliz e ansiosamente esperado. Ainda guardo as cartas (e de que tamanho) de pouco mais de um mês atrás! Que felizes confidências traziam!
Estranhei que ela para me participar o “grande dia” me mandasse um bilhetinho pequenito com umas linhas muito a correr... mas depois sorri compreensiva. Ah! A emoção dos primeiros momentos, a lua de mel, as cerimónias... Sim, era demasiado para ainda se conseguir tempo para escrever a alguém, mesmo a uma velha amiga como eu. Estava a ser egoísta e portanto resolvi escrever imediatamente ao jovem casal, testemunhando-lhes a minha amizade e felicitando-os pelo acontecimento.
Lembrava-lhes o seu namoro tão feliz, as belas qualidade do Zé Manel mesmo a condizer com as da minha amiga e desejava-lhes um montão de felicidades.
Passados dias recebo uma carta bem mais pequenina que o “tal” bilhetinho e muito mais fria que um iceberg. Pedia-me desculpa de não me ter enviado um convite escrito, o que juntava agora para eu ficar com uma recordação do seu casamento.
Abri o convite luxuosamente impresso e... ia tendo um colapso.
Na minha frente dançavam os nomes de senhora fulana de tal com o senhor Rui Jorge! Era evidente que eu tinha armado barraca! Mas também quem ia adivinhar que uns amores assim tão quentes iam arrefecer num instante e dar lugar a outros?
Serviu-me de lição e agora quem quer que se case eu fico à espera do convite, antes que o “Zé Manel” tenha sido trocado por outro “Zé” qualquer!

Graça Pereira, 1968

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Os Meus Poetas (II) - Sebastião Alba


Quem não conhece Diniz Carneiro Gonçalves? Filho do Professor e também escritor Albano Moás Gonçalves? Recordamo-lo jovem ainda, calcorreando as ruas
da cidade de Quelimane, em busca da sua reportagem (era colaborador activo do Jornal Notícias de Lourenço Marques), “alimentando-se” da sua poesia, ora doce, ora irreverente, algo intervencionista mas… sempre extraordinária. Quando os seus poemas começam a surgir, vêm assinados com o pseudónimo “Sebastião Alba”. Não o necessitava fazer! Quem conhecia Diniz Gonçalves apercebia-se logo que vivia num “mundo à parte”. O seu sorriso que vinha da bôca até aos olhos, era quase como um rir da vida, das pessoas e das coisas. Vestiu desde cedo a roupagem dos poetas. Parecia alheio à vida e que esta lhe passava ao lado, mas não! Diniz Gonçalves “dissecava” a vida minuciosamente e transmitia-a em palavras rimadas com mestria.
Hoje, é considerado um dos poetas portugueses mais originais. Igu
almente original foi a forma de vida que adoptou, também essa não nos surpreendeu. Diniz Gonçalves nunca foi homem de duas vidas e no momento de opção, ficou com a sua poesia, vivendo-a talvez de um modo diferente, mas autêntico.
Faleceu a 14 de Outubro de 2000. Deixou um bilhete, dirigido ao irmão: "
Se um dia encontrarem o teu irmão Dinis, o espólio será fácil de verificar: dois sapatos, a roupa do corpo e alguns papéis que a polícia não entenderá".

Do livro “O Ritmo do Presságio”, dois poemas; não porque sejam os melhores, mas porque falam e foram dedicados a outros amigos nossos.

Último Poema

(ao Jorge Viegas
)

Nestes lugares desguarnecidos
e ao alto limpos no ar
como as bôcas dos túmulos
de que nos serve já polir mais símbolos?

De que nos serve já aos telhados
canelar as águas de gritos
e com eles varrer o céu
(ou com os feixes de luar que devolvemos?)

É ou não o último
vôo bíblico da pomba?

Que sem horizonte a esperamos
em nossa arca onde há milénios se acumulam
os ramos podres da esperança.


1941-1968

Há muito já que o último amigo
se foi pela nomeada

abertura da terra

Há muito que a brisa

se deslaça e esquiva

no rebordo do traço

de duração entre datas


Um imperativo silêncio

desloca estes versos

Tão de súbito resumida

como evocar a amizade?

Seu nome de ilimitadas

sílabas desérticas?