terça-feira, 12 de agosto de 2014

A Ponta da Meada



(Continuação de Ana)


A vida dá tantas voltas, tecendo um manto com uma infinidade de fios entrelaçados, que acaba por não se saber onde está a ponta que deu início a tudo tal é o emaranhado e a confusão de trajetos mal combinados. Alguns, é evidente… E é neste tear da vida de muitas e variadas cores que, às vezes, mesmo sem intenção, se vai buscar a pontinha possivelmente mal acabada que ficou de fora do belo tecido cruzado e recruzado por tantos acontecimentos.

Era o que Margarida, uma das amigas próximas da Ana, pensava quando na paragem esperava pelo autocarro. Aquela chuva miudinha e irritante punha-a nervosa. Em pleno verão apanhara toda a gente desprevenida.
O dia começara quente e cheio de sol e ninguém esperava pela surpresa. Se não tivesse pressa até adoraria caminhar um pouco, sentindo as gotinhas pequeninas escorrendo-lhe pelo rosto. No entanto, a Maria Inês, que completava este terceto de amizade, estava à sua espera na pastelaria do costume e ela detestava chegar atrasada.
- E o autocarro que nunca mais chega! - E parecia um pião andando de um lado para outro, pondo a cabeça à roda de todos quantos ali estavam.
Esticou-se o mais que pôde para ver a rua até ao fundo:
- Lá vem ele! - Porque será que os autocarros chegam sempre atrasados quando temos hora marcada para alguma coisa? Nunca entenderia!
Quando chegou à pastelaria Maria Inês já ia no segundo pastel de nata.
- Ainda bem que chegaste amiga pois iria responsabilizar-te pelos quilitos a mais que em breve danificariam a minha silhueta…
- Maria Inês, já não és uma miúda, tens de saber controlar-te. Porque é que em vez de toda essa doçaria não pediste uma torrada? - Ralhou Margarida.
- Queridinha, achas que o meu estômago se contentaria com uma simples torrada quando estou preste a conhecer algo bombástico?
- Fala baixo! Este é um assunto que não quero que chegue aos ouvidos de ninguém.
E Margarida corria a pastelaria com olhar atento à procura de algum rosto conhecido.
- Vá, desembucha, antes que eu mande vir outro pastel de nata.
- Não sejas criança. O assunto é grave e confidencial.

Maria Inês sentou-se melhor na cadeira, aplicou todos os seus sentidos e preparou-se para ouvir a grande revelação.
- Sabes, – disse Margarida baixando a voz e olhando para todos os lados - o Ricardo é casado e tem dois filhos.
- O quêêeeee?!? - Quase gritou Maria Inês. - Não pode ser!
- É o que ouves. Também eu fiquei sem pinta de sangue quando o soube.
- E a tua fonte de informação é segura, de confiança? - Insistia Maria Inês.
- Como diz a minha avó, a mentira tem perna curta. E depois há fios da meada que ficam um pouco à mostra e daí…
- Mas qual meada? Não percebo nada…
- Esquece. O que eu quero dizer é que o meu amigo outro amigo tem e assim por diante. Aquilo que se julga bem guardado passa de um para outro quase sem querer. Basta haver um fio condutor que tudo coordena e vai dando sentido à trama, montando o puzzle.
- Afinal quem descobriu tudo? - Maria Inês roía as unhas.
- A mulher do António é grande amiga da Tonicha que namora com o Victor. E a Tonicha terá comentado com o namorado…
- E é claro que este pôs tudo na praça. Ainda falam das mulheres… Havia de ser comigo.
- Acalma-te, não foi nada assim. O Victor, em conversa com a mãe, contou-lhe que a namorada andava triste porque a grande amiga dela estava em vias de se divorciar. Tinham duas crianças pequenas, uma delas ainda de meses e ela não estava disposta a conceder o divórcio, pelo menos a bem…
- E…. - Maria Inês quase desaparecia na cadeira.

- E a mãe do Victor perguntou por perguntar, penso eu, qual era o nome do sujeito com a cabeça a prémio… E ele lembrou-lhe que já o teria visto, pelo menos uma vez, à saída do teatro na companhia da Ana Gonçalves e Sousa. Que se chamava Ricardo e era professor na faculdade. Acho que a mãe nem queria acreditar e obrigou o filho a confirmar duas ou três vezes se era mesmo da Ana Gonçalves e Sousa, filha da sua amiga Marta, de quem ele estava a falar. O filho confirmou, mas perante a insistência da mãe, que queria saber se eles já se namoravam, o pobre do Victor já só queria encerrar o assunto. Pediu à mãe que não dissesse nada à Marta, que aparentemente não sabe de nada disto, lembrando que o Ricardo até pode ter boas intenções e esteja realmente à espera do divórcio para assumir o relacionamento com a Ana. A mãe ainda lhe perguntou se afinal havia relacionamento entre os dois ou não mas o Victor, certamente já arrependido de ter falado no assunto, apenas rematou diplomaticamente dizendo que, pelo menos oficialmente, não havia nada de concreto.
- Pois, pois… Estes homens abrem a boca e depois não sabem como fechá-la, é o que é! - Maria Inês estava espantada. - Mas afinal como soubeste de tudo isto, não és assim tão próxima do Victor para que ele te viesse contar isto tudo… penso eu claro…
- Claro que não, mas encontrei casualmente a Tonicha, de quem, como sabes, também sou amiga, e ela contou-me todo o episódio, desde o triste caso da sua amiga, a mulher do Ricardo até à atribulada conversa em que o namorado meteu os pés pelas mãos com a mãe. Como deves imaginar fiquei logo ali furiosa. Fui para casa e pus-me a fazer contas da vida da Ana. Repara, vê se não é assim? A Ana começou a namorar o Ricardo dois anos depois da morte do pai. O senhor faleceu há seis anos, portanto ela namora com ele há cerca de quatro anos… Como é que a filha mais nova do Ricardo só tem uns meses de idade? Estás a ver a jogada?

- Pode ser adotada! – Replicou Maria Inês já aflita.
- Estás mas é a levar uma bofetada e ver se os teus neurónios trabalham. - Afirmou Margarida exasperada.
- E então agora o que fazemos?
Margarida falava como se estivesse a raciocinar em voz alta, só para si. "O Ricardo pede o divórcio à mulher que não lho concede. Entretanto, ele quer regularizar a situação com a Ana e diz-lhe que é divorciado mas oculta-lhe que é pai, naquela altura de uma só criança. O segundo filho vem na tentativa não de uma reconciliação, mas sim de um apaziguamento, espécie de paz podre, para pedir à mulher, em troca, o divórcio amigável…"
- Mas ele está a enganar a Ana miseravelmente. Alguém tem de por cobro a esta situação. Não achas que temos de ir falar com ela? Somos amigas há tantos anos, temos que lhe contar a verdade! - Maria Inês era impulsiva mas de muito bom coração.
- Será que tenho de te amarrar à cadeira? Situações destas têm de ser elegantemente desmascaradas, a sangue frio e na hora exata. - Margarida endurecera as suas feições e mudou o ritmo da conversa. - Vou pensar muito bem em tudo e o que for feito será em grande, tentando magoar o menos possível a Ana.
- Se estivesse cá o Daniel, seria uma ótima ajuda. – Lembrou Maria Inês.
- Claro, é isso mesmo! - Exclamou Margarida. - Em último caso entramos em contacto com ele. Agora este recado é para ti, o que aqui ouviste fica só entre nós e mais ninguém! Estás a perceber? – A voz de Margarida tomava um tom ameaçador.

- Claro Margarida, podes contar comigo. Mas, para atenuar este choque, posso mandar vir mais um pastel de nata?
Margarida olhou-a de alto a baixo.
- Podes, mas se depois não couberes na porta do autocarro o problema é teu.

(Continua)