É pela calada da noite que as minhas lembranças tocam mais
depressa o meu coração. No momento em que escrevo não sei que horas são mas sei
que passa muito, mas mesmo muito, da meia noite. No silêncio que me envolve
sinto as ondas da vida na minha consciência, falando, contando coisas. E quem
consegue fugir a esta confissão? Há tantos monólogos guardados dentro de mim
que, agora, como uma bolha, assumem ao terraço da minha alma.
Os meus amigos dizem-me que na minha mente não há espaço
para mais nada, está repleta de lembranças, histórias e nomes. E é verdade! Eu
lembro-me da mãe da Lurdes; a padeira de aljubarrota como lhe chamávamos pelo
seu físico estrondosamente redondodo e voz cavernosa com que chamava pelas
crianças que brincavam no pátio.
- Crianças, vocês não têm casa?
E era ver quem se escapulia primeiro...
E a Dona Irene, uma velhota de quase oitenta anos que não
perdia uma única sessão de cinema da noite. O vizinho, dono de um cinema,
oferecia-lhe essa “gulodice”.
- Dona Irene, de qual filme gostou mais esta semana?
- Ah, de todos, de todos. E a criançada ria.
As recordações chegam às catadupas, como se estivessem
apontadas em inúmeros cadernos numa projecção incansável.
- Os tempos não passam para ti...
Passam, passam... Tu é que passas pelos tempos sem reparar
neles.
- Lembras-te dos dias sublimes e longínquos da tua infância?
O que de ti ficará quando tudo passar?
No tricot da vida ficam os pontos perfeitos em que buscamos
a liberdade de nos descobrirmos como éramos. Caso contrário, será dificil
descobrir-mo-nos plenamente, livres autênticos como dantes.
Sei que esta noite mais memórias chegarão, algumas com
armadilhas inevitáveis e outras com uma ementa que não saberei por onde
começar.