domingo, 25 de novembro de 2012

Postal de Natal

 
Tiago acocorou-se atrás de uns arbustos pensando que aquela noite iria ser muito frutuosa para si. Há mais de duas horas que vigiava o bairro procurando as grandes casas de gente endinheirada. Em algumas, tinha de ter cuidado: havia cães perigosos, fechaduras com alarmes, e, noutras, já se festejava o Natal com grande alarido e muitos convidados.
Tiago tinha que esperar pelo momento oportuno, não tinha dúvidas. Entretanto pensava como havia chegado àquele caminho… Tivera um trabalho tradicional na família mas que resultara num fracasso. O seu irmão mais velho singrara na vida. Era um empresário de sucesso, no topo da fama e das finanças. Tiago queria também mostrar à família que era um homem de dinheiro e tinha um pequeno trabalho que apenas servia de fachada a outros meios perigosos onde ia buscar o desejado poder. Ali, acocorado, esperando a melhor altura para fazer um assalto, pensava que tinha seguido por aquele caminho só para agradar à família e não ficar atrás do seu irmão. Mas afinal porquê? Sabia fazer tantas coisas… trabalhava a madeira como ninguém. Já entrara em leilões onde os seus trabalhos eram os mais cobiçados, e por bom preço. Trabalhara em antiquários de renome, onde restaurara com minúcia peças muito antigas. Não, tinha de mudar de vida e logo agora que pensava em constituir família. Susana merecia o melhor que lhe pudesse dar.
Esta noite seria a última vez! Depois abriria o seu negócio e, já com algum nome na praça, seria o antiquário mais famoso do país. Estava decidido: seria a última vez!
Cheio de boas intenções saiu do seu esconderijo e foi por um atalho, talvez para chegar mais depressa a casa. Mas, a última das vivendas, onde vivia uma velhinha simpática, tinha as janelas com as cortinas corridas e, dentro da sala, via-se a velhota muito animada a colocar prendas debaixo da árvore de Natal e depois a espalhar as pequenas lâmpadas coloridas por todo o pinheiro. Devia estar sozinha pois não via ninguém a ajudá-la.
Por fim, a velha senhora, colocava postais de Natal belíssimos em cada ramo da árvore. Tinha ainda um na mão e olhava-o pensativa, estudando onde ficaria melhor aquele postal tão especial. Finalmente prendeu-o à parede que ficava em frente da porta. Tiago pensou que aquela porta devia levar às escadas que conduziam ao andar de cima. Com certeza que a senhora Margarida seria dona de belas e antigas jóias. Sorriu satisfeito!
Quando é que ela iria para a cama? Mas a senhora Margarida voltou à sala e abria e fechava a porta para ver se tudo estava bem preparado para receber os netos no dia seguinte.
Sentou-se na velha poltrona junto à lareira e tomou o seu chocolate quente (que já não estava tão quente, depois das voltas e voltas que a senhora dera…) e contemplou feliz a sua bonita árvore de natal. Olhou o relógio, ”Meu Deus, as horas que já são!” Levantou-se e caminhou até à porta. Deu um último olhar à sala e sorriu satisfeita. Apagou as luzes e dirigiu-se para o andar de cima, para o seu quarto.
Tiago pensou que seria muito fácil assaltar aquela casa. Já na cama, Margarida foi pensando na alegria que os netos teriam no dia seguinte… estava tudo tão bonito. Fechou os olhos e o sono foi apoderando-se dela, pesadamente.
De repente, os seus olhos abriram-se “O que foi aquilo” Teria ouvido bem? Afinal a casa já era velha e tinha sempre ruídos esquisitos. Se o barulho continuasse, bastava tocar no telefone que estava ligado à casa do filho, quase ao lado da sua e logo Mário estaria ali.
Acalmou-se e voltou a aconchegar-se na cama. Mas volvidos poucos segundos Margarida ouviu um som que lhe dava a certeza que alguém tinha entrado na sua casa.
Tiago entrara pela janela da sala que cedera com facilidade. “Ela devia ter cadeados nas janelas” pensou. Talvez nessa noite a senhora Margarida aprendesse a ter mais cuidado.
Afinal, Tiago pensava que até estava a fazer uma boa acção… Começou a colocar pequenos objectos de valor nos seus bolsos e dirigiu-se para a porta do corredor. Parou para escutar.
Tiago não queria meter medo à senhora Margarida mas pensou nas jóias que ela deveria ter guardadas no seu quarto. Não queria também arriscar muito e muito menos ser preso.
Abriu a porta com cuidado e subitamente um som muito alto atordoou no silêncio da casa.
A abertura da porta criara uma corrente de ar que fez abrir o postal de cânticos de Natal que a senhora Margarida colocara na parede. Tiago fechou a porta e correu para a janela, cessando assim a música. Falhara de novo.
Entretanto Mário atendeu o telefonema da mãe e dirigiu-se logo para a casa da senhora Margarida, enquanto a esposa chamava a polícia.
Tiago, já seguro em sua casa, jurava a si próprio que deixaria definitivamente aquele modo de vida.
Na manhã do dia de Natal a velha senhora ao abrir a porta de sua casa encontrou dois embrulhos: um continha as peças roubadas e outro uma séria de cadeados para as janelas.
A polícia abandonou o caso embora tivessem desconfiado um pouco do Tiago, o ladrão fracassado e de bom coração.
No Natal do ano seguinte, Tiago enfeitava a sua árvore e tal como a senhora Margarida, colocou um postal com cânticos na parede em frente da porta da sala e, quando esta se abria, o vento abria também o postal enchendo o ar com lindíssimas músicas que faziam sorrir o seu filho de poucos meses.
Para Tiago, um empresário feliz no restauro de mobílias, este postal era o sinal de como no Natal anterior, representara um rasgo na sua sorte.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Depressão Pré-Natal


Não tarde é Natal e dou por mim num estado de angústia que, vendo bem, nem sequer é de agora. Arrasta-se há anos, embora não possa precisar desde quando. Que não é desde sempre, disso tenho a certeza, pois lembro-me bem dos natais da infância e não eram precedidos de angústia, mas de excitação e de espanto, de magia e de festa.
A excitação e o espanto começavam no dia em que a minha mãe me levava a ver as iluminações que enfeitavam as ruas da Baixa e eu me detinha, maravilhada e sem fala, de nariz colado ao vidro da montra dos armazéns do Grandella, seguindo o comboio que subia e descia montes e vales forrados a pano, com neve de esferovite a cair pelas encostas das pregas, e pais natais sorridentes esboçando gestos que, embora funcionassem a pilhas, me pareciam autenticamente benignos.


A excitação a seguir era escolher um pinheiro, e o próximo espanto, enfeitá-lo. Não podia ser demasiado pequeno, para que as bolas de vidro não sufocassem os ramos, nem grande demais, para caber no porta-bagagens do carro, primeiro, e no canto da sala, a seguir, junto à janela, de forma a que as pessoas que passassem na rua pudesse vê-lo de fora.
As bolas, as luzes e milhares de fitas às cores saíam então de caixotes que a minha mãe ia buscar à despensa e rapidamente o simples pinheiro, nem muito grande, nem muito pequeno, ganhava um novo estatuto e presidia imponente, de pé, às comemorações natalícias.
Depois vinham de novo a excitação e o espanto de montar o presépio. O meu pai esvaziava uma prateleira da estante para que as várias figuras de barro ocupassem os respectivos lugares e funções junto ao Menino Jesus. Animais e pessoas espalhavam-se em torno da manjedoura com tecto de palha, recriando a vinda do Deus Menino ao mundo dos homens.

Apesar de ninguém poder ver o presépio da rua e de a sua presença na sala ser menos notada do que a do pinheiro, todos sabíamos que, em termos simbólicos, era por ele que passava o Natal. Era nesse Menino que já tinha sido de carne e de sangue que residia o milagre do amor e do espanto.
Mais tarde, na Missa do Galo, acontecia a magia. Numa pequena capela iluminada com velas, o Menino recuperava o pulsar e a forma do sangue e do corpo e deslizava por nós, a comunhão do encontro estendia-se à ceia onde agora em vez do pão e do vinho, havia bolinhos e um chocolate espesso e forte.
Finalmente, no dia seguinte, a família e a festa completavam o quadro. Olho para trás e revejo-me, em casa dos meus avós, espreitando os presentes ainda escondidos na esperança de adivinhar-lhes as formas. Uma boneca, um jogo, um livro, um carrinho…
E nisto o presente devolve-me à depressão de que vos falei no início. Não tarda é Natal e não sinto alegria nem espanto. A Baixa deixou de ter o exclusivo das iluminações natalícias e já não fico colada ao vidro das montras, de tal forma todas me parecem iguais e repetitivas.

O pinheiro é o mesmo de há anos, a mesma artificialidade dos ramos, a excitação do escolher verdadeiro, transformado num gesto deselegante. O presépio deixou de ocupar a prateleira da estante, eu deixei de caber, sentada e feliz, nos degraus do altar da pequena capela e a casa dos meus avós foi vendida, depois de eles a as tias terem morrido.
Talvez o mal desta angústia pré-natalícia esteja no ter-me tornado. Que a alegria e o espanto da infância, tragicamente, cederam lugar ao desencanto vazio de quem já não precisa de ir espreitar um presente escondido, pois conhece de cor a forma que oculta. Que o facto de andar a correr, de festa para festa e de família em família, diminuiu os tempos de encontro e aumentou os níveis de stress.
E, no entanto, nada é tão simples assim. Apesar desta angústia latente, sei que conservo a capacidade de surpreender os meus filhos, como os meus pais me surpreendiam, de cada vez que tiro o pinheiro da despensa e o enfeitamos com bolas, luzes e fitas. Sei que asseguro o ritual do presépio e a sua magia. Que a comunhão do amor continua a cumprir-se, em corpo e em espírito, mesmo na ausência das velas e noutro lugar que não a capela da minha infância.
Que a festa assegura os laços de sangue, ainda que tenha de ser dividida por várias casas e várias famílias.
Se querem saber o que me deprime é a antecedência exagerada da espera. É a globalização das luzes nas ruas, ainda apagadas, no fim de Outubro. É o ritmo, frenético, que se apodera de tudo. É a comercialização dos presépios, a voracidade com que se rasgam embrulhos, os anúncios com musiquinha de sinos. Angustia-me o Natal transformado em pretexto, o Natal convertido em pano de fundo, o Natal reduzido à frase feita feliz dos postais, o Natal usurpado pelo consumo. Se não fosse isso, a alegria e o espanto, a excitação, a surpresa, a magia, o encanto e a festa da minha infância estariam intactos. E eu escusava de estar deprimida….


- Inês de Barros Baptista in “Os Dias da Luz”