segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Da Minha Estante


Não basta morrer para conhecer o sorriso de Deus, mesmo que, como foi o meu caso, se tenha vivido abismada nele uma vida inteira. Quando o pior acontecia aquele sorriso descia às minhas trevas com um soluço de baloiço, um gingar de gonzos arrancado às cordas da infância.
Eu sentava-me nele e subia, balouçando, até à luz. O pior aconteceu-me cedo, tive sorte. Deus procura primeiro os que sofrem antes do conhecimento específico da dor, talvez porque os outros sabem demasiado para poderem ser salvos.
Não me levantarei da cama amanhã depois de Lhe pedir em surdina que dê um impulso maior ao balouço, que o empurre com força até que os pés me voem para fora do calor aterrado dos lençóis. Ninguém mais vai estar à minha espera, não terei de me disfarçar de desculpas, não voltarei a iludir ou desiludir ninguém. Não voltarei a morrer no corpo do único homem que me abriu no corpo a passagem secreta para a morte. Não voltarei à desilusão do renascimento. Sobretudo não voltarei a desiludir-te a ti, o descrente que me ensinou a crer melhor, o meu pequeno e velho Deus da algibeira, o meu amigo.


Enquanto morria, não vi a minha vida em câmara lenta nem vales verdejantes, nem sequer ouvi músicas celestiais. Talvez seja possível morrer-se assim, como tantas vezes ouvi contar.
Morri em eco, desdobrada. Morri como um sem abrigo perdido no caminho para o meu útero, morri porque o meu corpo decidiu gerar uma vida nova e se enganou. Percebi que a morte abria as comportas do meu sangue, mas só no fim desse rio vermelho percebi que levava comigo um filho impossível.

Os casamentos, como os funerais, são dias de esquecimento. Embriagamo-nos de champanhe ou de lágrimas , afogamo-nos no leito grosso de ruínas sobre as quais o sangue habitualmente circula ,e de repente é noite e não sabemos bem o que se passou. Só depois , nas fotografias , nos damos conta de que estivemos lá – mas dos enterros não se guardam fotografias. Do teu, ficaram as fotografias dos jornais , uns segundos de filme na televisão , entremeados de imagens de arquivo – a política sempre tem algumas vantagens. Tu apareces já transformada em caixa negra , com a bandeira verde e vermelha por cima – berrante até ao fim mesmo no mistério mortal. Tinhas às vezes tanta pena da tua falta de mistério, Sininho – terei chegado a dizer – te que essa transparência seduzia infinitamente mais do que todos os sobrepostos véus das divas que invejavas?

Os teus dedos poderão estar enroscados no vento, os teus dedos que já não existem? Quando tu existias o vento era apenas o vento Cada coisa tinha uma forma exacta e uma história de duração. Perdi a dureza que me fazia durar quando te perdi , ou melhor , quando desapareceste e eu me perdi em ti.


O teu corpo ainda tão quente – barro , a tua Bíblia diz que agora és barro , essa ideia devia conformar-me mas eu não sou crente. Arranhei a tua mão – se ao menos uma gota de ti pudesse ainda escapar da tua morte para a minha vida , irmanar –nos num pacto de sangue , com a leviandade valente das crianças. O calor que subia ainda da tua pele – não seria o teu desejo do meu sangue? Compreendi finalmente o nosso velho Camilo; quis profanar –te – se é que esse verbo pode dizer a urgência de te romper a pele para a incendiar com a dor da vida , de te ressuscitar com beijos ou atravessar contigo o túnel húmido da morte.
…Desejo –te tanto ainda.

Inês Pedrosa, in “Fazes-me Falta”

sábado, 21 de janeiro de 2012

O Senhor X


O frio da rua empurrou-a mais depressa para casa. Mal entrou o telefone tocou estridentemente. Sem tirar o casaco e o gorro de lã atendeu prontamente. Escutou uma voz masculina simpática e amável:
-Olá, como está? É a amiga da Ana Maria, não?
-Eu estou bem, sou de facto amiga da Ana Maria mas não sei quem me fala…
-Não acredito! Ainda ontem estivemos todos juntos no café da baixa, eu estava no grupo do Pedro Gonçalves e cumprimentei-a…
-Não me recordo de nada! Afinal o grupo era tão numeroso…
-Claro, passei despercebido aos seus olhos.
A conversa estendeu-se por largos minutos num jogo de esquivas e desentendimentos que levou Eduarda a pensar que ela não seria a pessoa com quem o senhor pretendia falar mas que, ao fim e ao cabo, era uma pessoa com quem se podia falar. Era inteligente, com uma voz bonita, amável e bem educado. Curiosamente havia muitas coincidências nos gostos de ambos e sobre vários temas… Contudo, desligou sem dizer o seu nome.
Mentalmente passou revista aos amigos da Ana Maria e do Pedro Gonçalves. Este último só acompanhava gente bem e do bom. Era assim como uma espécie de cartão de recomendação.
Eduarda admirou-se como não lhe desligou o telefone com as palavras exigidas para o momento mas confessava que ficara deslumbrada com a conversa brilhante do seu interlocutor misterioso e o mistério é, sem dúvida, bem atractivo.
No dia seguinte, ao chegar a casa, repetia-se o telefonema. Eduarda já o aguardava ansiosamente e devia dizer que se sentiria defraudada se o misterioso desconhecido não se atravesse a essa audácia e abuso. Desculpava-se consigo própria: é apenas curiosidade!
Desta vez a conversa foi mais longa e Eduarda foi obrigada a reconhecer a sua cultura e conhecimentos. Estava a par de tudo: da política do governo, da Economia, da cultura em geral, dos livros mais lidos em todo o mundo. Tinha uma ideia muito própria sobre a velha Europa e de quem mandava nela… Quanto a dizer o nome, nem sequer uma pequena abertura e o mistério continuava. Mistério que ele, astutamente, adensava.
E as conversas longas, diárias e interessantes continuaram por mais um mês… Eduarda insistia sempre em querer saber o seu nome, ameaçando que, no próximo telefonema, lhe desligaria o telefone. Ele desculpava-se dizendo que talvez o nome não encaixasse na figura que Eduarda já faria dele…


Uma noite ele perguntou-lhe o que fazia e Eduarda sentiu vontade em se abrir:
-Sou licenciada em Línguas e Biologia com doutoramento nos dois cursos mas, actualmente, tenho um sonho, publicar um livro…
-De estudo?
-Não, não! É antes uma espécie de testemunho ou missão! Como sabe, nasci em Moçambique onde vivi os anos mais felizes da minha vida e gostaria de publicar um livro sobre essa vivência, sobre o lado mais mágico desse país. Mas tenho tido alguma dificuldade com as editoras…
-Mas talvez eu lhe possa ser útil – interrompeu o senhor X – Tenho um amigo capaz de a encaminhar no que pretende. Vou telefonar-lhe já e amanhã poderá ir ao escritório dele falar-lhe sobre o assunto.
Eduarda não sabia o que pensar… Ia ao escritório de um desconhecido apresentada por outro desconhecido também… Era de loucos! Mas ele, apercebendo-se da sua hesitação, acrescentou convincente:
-Você não precisa de apresentação, é uma pessoa com muito valor e uma bagagem cultural enorme. Vai apenas falar com alguém que pode interferir naquilo que pretende.
Eduarda, convencida, apresentou-se na tarde seguinte no escritório do amigo do senhor X.
Ele já sabia ao que ela vinha. Eduarda procurou saber o nome do seu desconhecido ao que ele se esquivava sempre, parecendo que havia um pacto entre eles.
Eduarda achou o senhor insuportável, quase antipático e saiu do escritório com a sensação que tinha dado passos em vão.
No dia seguinte o senhor X perguntava-lhe:
-Então como correu a visita?
Eduarda descarregou nele a sua decepção:
-Achei-o prepotente, convencido e um autêntico pedante…
O desconhecido reagiu:
-Pedante? Olhe que não… é o seu jeito natural mas é uma pessoa de muito valor e competente!
-Com aquela pose de conquistador barato? Tenha dó!
Entraram os dois numa discussão acesa. Eduarda atacava e ele defendia o amigo.
Daí por diante as qualidades do dito cujo faziam parte das suas conversas.
Um dia, Eduarda encontrou o intragável numa exposição de fotografia. Ele cumprimentou-a efusivamente e ofereceu-se para a acompanhar na visita ao salão, convite que ela declinou rapidamente desculpando-se que estava já de saída.
As conversas com o senhor X estenderam-se ao longo de um ano e Eduarda esperava-as como algo já precioso na sua vida. É que realmente é difícil encontrar uma pessoa com um grau de cultura tão abrangente e com uma conversação elevada e tão natural ao mesmo tempo.
Um dia, sem qualquer explicação, ele deixou de lhe telefonar. Eduarda pensava o que se teria passado: talvez estivesse doente, tivesse até morrido e sentiu verdadeira pena.
Mas um dia, volvidos quase três meses, como a lua que volta sempre nos seus quartos de tempo, ele telefonou-lhe.
-Mas o que lhe aconteceu? – perguntou Eduarda curiosa.
-Fui de viagem até África e estive no seu país… A cidade das acácias debruçada sobre o Índico… Tem razão a sua paixão por Moçambique.


Eduarda duvidou de tal viagem e ainda mais quando o senhor X lhe disse que fora integrado numa comitiva oficial do Governo. Devia estar a auto promover-se…
Mal desligou Eduarda ligou para um antigo colega jornalista, área onde ela também trabalhara e pediu-lhe que lhe arranjassem a lista das pessoas que tinham feito parte da comitiva do Governo que fora há poucos dias a África.
De posse de uma lista razoavelmente extensa onde figuravam os respectivos números telefónicos, Eduarda deu início a uma caça ao desconhecido. Arranjou um estratagema.
Era a secretária de um tal doutor Pimentel que estava a ligar porque o mesmo pretendia falar.
Os visados vinham ao telefone, Eduarda ouvia-lhes a voz e desligava.
Entretanto, as conversas nocturnas com o senhor X continuavam!
De eliminatória em eliminatória quando restavam três ou quatro nomes, Eduarda descobriu que um deles era do amigo antipático a quem ela fora recomendada pelo desconhecido.
Concluiu logo: ou ele nunca foi a África ou então ele é o seu amigo execrável. Esta última possibilidade deixava-a nervosa, ela que falara tão mal da dita criatura. A dúvida deixava-a mal disposta. Um dia resolveu tirar a prova dos nove: ligou para o escritório do amigo desconhecido e foi precisamente o senhor X quem a atendeu.
Eduarda sentiu que o chão lhe faltava e disse apenas:
-Então é você?
Nervoso e atarantado, afirmou:
-Não, eu não sou eu… - mas como não tinha como fugir, rendeu-se à evidência pedindo desculpa.
-Estava tão lisonjeado com o conceito que fazia de mim que não tive coragem de lhe dizer a verdade e ainda por cima quando o meu amigo, o meu outro eu, era tão mal tratado por si.
Eduarda pensou que ao menos ele tinha espírito e até uma certa elegância.
Encontrou-o algumas vezes no grupo do Pedro Gonçalves com o seu ar um pouco snob e convencido e cumprimentava-a sempre mas de raspão. Ainda lhe telefonou umas duas ou três vezes mas a verdade é que o encanto estava desfeito e quebrara-se o feitiço das conversas culturais que animaram durante um ano as noites de Eduarda.
Sem nada para dizer um ao outro, o senhor X deixou de telefonar.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Pergunta-me


Pergunta-me
Se ainda és o meu fogo
Se acendes ainda
O minuto de cinza
Se despertas
A ave magoada
Que se queda
Na árvore do meu sangue

Pergunta-me
Se o vento não traz nada
Se o vento tudo arrasta
Se na quietude do lago
Repousaram a fúria
E o tropel de mil cavalos


Pergunta-me
Se te voltei a encontrar
De todas as vezes que me detive
Junto das pontes enevoadas
E se eras tu
Quem eu via
Na infinita dispersão do meu ser
Se eras tu
Que reunias pedaços do meu poema
Reconstruindo
A folha rasgada
Na minha mão descrente

Qualquer coisa
Pergunta-me qualquer coisa
Uma tolice
Um mistério indecifrável
Simplesmente
Para que eu saiba
Que queres ainda saber
Para que mesmo sem te responder
Saibas o que te quero dizer.


- Mia Couto
, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"


quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Amizade

Para começar 2012 escolhi o tema: Amizade!


Haverá palavra mais bonita? Foi com todos vós que comecei a urdir uma teia que fará em Fevereiro três anos! Alguns parece-me que os conheço desde sempre… tal foi a empatia entre nós! Outros, chegados depois, deixaram também o seu traço e vão criando o seu espaço no meu coração! A teia partiu-se em dois lados quando Deus chamou a Si duas Amigas: a querida Renata e a Fernandinha dos Poemas. Mas, acredito que, no céu, elas continuam a tecer agora fios de luz.
Oiço ainda a “voz” da Renatinha que surgia no meu blog a qualquer hora do dia ou da noite, atravessando o oceano para me dizer: “Vim tomar o café da manhã contigo”, ou então, “está tanto calor, fiz um suco da laranja geladinho para as duas tomarmos no teu jardim ou aqui na minha varanda olhando a lua.” Posso esquecer? NÃO! Afinal, a Amizade são estes gestos tão simples que chegam por vezes no momento que mais precisamos. Não compliquemos a Amizade… ela é apenas uma teia que deseja crescer… crescer…


"E um jovem disse, fala-nos da Amizade. E ele respondeu dizendo:
O vosso amigo é a resposta às vossas necessidades. Ele é o campo que cultivais com amor e colheis com gratidão. E é o vosso apoio e o vosso abrigo. Pois ides até ele com fome e procurai-lo para terdes paz.
Quando o vosso amigo fala livremente, vós não receais o “não”, nem retendes o “não”.
E quando ele está calado o vosso coração não deixa de ouvir o coração dele; Pois, na amizade, todos os pensamentos, todos os desejos, todas as esperanças nascem e são partilhadas sem palavras, com alegria. Quando vos separais de um amigo não fiqueis em dor, pois aquilo que mais amais nele tornar-se-á mais claro com a sua ausência, tal como a montanha, para quem a escala, é mais nítida vista da planície.
E não deixeis que haja outro propósito na amizade que não o aprofundamento do espírito.
Pois o amor que só procura revelação do seu próprio mistério, não é amor mas uma rede lançada que só apanha o que não é essencial.
E deixai que o que há melhor em vós seja para o vosso amigo, já que ele tem de conhecer o refluxo da vossa maré, que conheça também o seu fluxo.
Pois para que serve o vosso amigo se só o procurais para matar o tempo?
Procurai-o também para VIVER.
Pois ele preencher-vos-à os desejos, mas não o vazio.
E na doçura da amizade que haja alegria e a partilha de prazeres.
Pois é nas PEQUENAS COISAS que o coração encontra a frescura da sua manhã."

- Kahlil Gibran