Não basta morrer para conhecer o sorriso de Deus, mesmo que, como foi o meu caso, se tenha vivido abismada nele uma vida inteira. Quando o pior acontecia aquele sorriso descia às minhas trevas com um soluço de baloiço, um gingar de gonzos arrancado às cordas da infância.
Eu sentava-me nele e subia, balouçando, até à luz. O pior aconteceu-me cedo, tive sorte. Deus procura primeiro os que sofrem antes do conhecimento específico da dor, talvez porque os outros sabem demasiado para poderem ser salvos.
Não me levantarei da cama amanhã depois de Lhe pedir em surdina que dê um impulso maior ao balouço, que o empurre com força até que os pés me voem para fora do calor aterrado dos lençóis. Ninguém mais vai estar à minha espera, não terei de me disfarçar de desculpas, não voltarei a iludir ou desiludir ninguém. Não voltarei a morrer no corpo do único homem que me abriu no corpo a passagem secreta para a morte. Não voltarei à desilusão do renascimento. Sobretudo não voltarei a desiludir-te a ti, o descrente que me ensinou a crer melhor, o meu pequeno e velho Deus da algibeira, o meu amigo.
Enquanto morria, não vi a minha vida em câmara lenta nem vales verdejantes, nem sequer ouvi músicas celestiais. Talvez seja possível morrer-se assim, como tantas vezes ouvi contar.
Morri em eco, desdobrada. Morri como um sem abrigo perdido no caminho para o meu útero, morri porque o meu corpo decidiu gerar uma vida nova e se enganou. Percebi que a morte abria as comportas do meu sangue, mas só no fim desse rio vermelho percebi que levava comigo um filho impossível.
Os casamentos, como os funerais, são dias de esquecimento. Embriagamo-nos de champanhe ou de lágrimas , afogamo-nos no leito grosso de ruínas sobre as quais o sangue habitualmente circula ,e de repente é noite e não sabemos bem o que se passou. Só depois , nas fotografias , nos damos conta de que estivemos lá – mas dos enterros não se guardam fotografias. Do teu, ficaram as fotografias dos jornais , uns segundos de filme na televisão , entremeados de imagens de arquivo – a política sempre tem algumas vantagens. Tu apareces já transformada em caixa negra , com a bandeira verde e vermelha por cima – berrante até ao fim mesmo no mistério mortal. Tinhas às vezes tanta pena da tua falta de mistério, Sininho – terei chegado a dizer – te que essa transparência seduzia infinitamente mais do que todos os sobrepostos véus das divas que invejavas?
Os teus dedos poderão estar enroscados no vento, os teus dedos que já não existem? Quando tu existias o vento era apenas o vento Cada coisa tinha uma forma exacta e uma história de duração. Perdi a dureza que me fazia durar quando te perdi , ou melhor , quando desapareceste e eu me perdi em ti.
O teu corpo ainda tão quente – barro , a tua Bíblia diz que agora és barro , essa ideia devia conformar-me mas eu não sou crente. Arranhei a tua mão – se ao menos uma gota de ti pudesse ainda escapar da tua morte para a minha vida , irmanar –nos num pacto de sangue , com a leviandade valente das crianças. O calor que subia ainda da tua pele – não seria o teu desejo do meu sangue? Compreendi finalmente o nosso velho Camilo; quis profanar –te – se é que esse verbo pode dizer a urgência de te romper a pele para a incendiar com a dor da vida , de te ressuscitar com beijos ou atravessar contigo o túnel húmido da morte.
…Desejo –te tanto ainda.
Inês Pedrosa, in “Fazes-me Falta”