Tantas estrelas!
A noite estava de prata polvilhada, como se fosse magia! Os crisântemos brancos pareciam descidos do céu, aguardando num balde o dia seguinte … de Todos os Santos!
Mariana aspirou os odores da noite que lhe despertavam tantas recordações. Estava-se bem na varanda. Os seus olhos abertos sobre a verdade que pressentia humedeciam-se.
Os lábios, entreabertos numa oração, sabiam a sal. Maquinalmente compôs o cabelo enquanto se interrogava se conseguiria dormir depois de ter ouvido a voz do Pedro magoada, revoltada, dizer-lhe: “Estou a morrer aos poucos”. Olhara espantada a face que tinha na sua frente e vira uma expressão de dor.
Teria andado distraída? Aonde estaria aquela ruga, marcando uma testa habitualmente lisa, que nunca vira antes?
A frase queimava-lhe a alma. Tinha a certeza que Pedro não mentia. Conhecia-o bem!
Por isso aquele cansaço que ultimamente notara nele… Começou a juntar as peças do puzzle…
Há quanto tempo se sentiria assim tão doente? Não lhe dissera nada, nem ao Francisco.
Pedro guardara para si a sua dor e tristeza para que os dois fossem felizes algum tempo mais.
Amou-o ainda mais, se possível! Lembrava-se agora que, no ano anterior, Pedro desfiara projectos para quando chegasse o momento da aposentação e, há pouco tempo atrás, afirmara que trabalharia até morrer. Não era habitual tanta contradição em Pedro.
Mariana angustiava-se mais à medida que a verdade se tornava mais clara. Iria ficar sem o seu Pedro? Não, não poderia ser. Tinha de haver outra explicação: trabalho e dedicação a mais no serviço ficando muitas vezes fora das horas de expediente, entre papéis e mais papéis…
Era isso: um esgotamento, nada que uns dias em casa com muito descanso e uma alimentação cuidada não resolvesse.
Contudo, a tranquilidade dissera adeus a Mariana. E aquela angústia que a cercava cada vez mais, sufocando-a... Já a conhecia tão bem.
Poisou o seu olhar nos crisântemos cor de prata… Seria um presságio?
- Estás a apanhar frio, vem deitar-te. – Disse-lhe Pedro por detrás dela. - Já é tarde e o Francisco deve estar a chegar.
A noite continuava linda mas havia no ar um doloroso lamento que Mariana recusava-se a ouvir!
……
Mariana olhava fixamente a estrada doirada que o sol projectava por cima de um mar azul tão quieto. Parecia uma tarde de Verão. Observava a marcha dos ponteiros do relógio e perguntava-se : “Quando será?” Desejaria que o tempo parasse e ficasse suspenso como uma nuvem branca e fofa num firmamento onde se cruzaram vidas felizes e realizadas.
Olhou Pedro com ternura, como o amava, santo Deus! Deliciou-se com a sua serenidade… Sempre fora um homem que pisara forte na vida e parecia-lhe que o medo nunca fora seu baluarte. Seria? Recordava-se de uma cena recente e tão dolorosa que nunca mais a deixaria…
Viu Pedro, o seu Pedro, com a cabeça entre as mãos perguntando: “ Porquê a mim, meu Deus, porquê a mim?”
Mariana desfeita por dentro num turbilhão de sentimentos, de revolta, de piedade e sobretudo muito amor, contendo as lágrimas, apenas soubera dizer-lhe: “E os outros, meu querido, também fazem essa pergunta…”
Mariana dava-se conta agora de como fora pobre e esfarrapado o seu consolo. Tão esfarrapado como estava agora o seu coração. Sacudiu a cabeça tentando afastar pensamentos tão negativos; afinal, ainda havia uma esperança e a prova é que Pedro estava ali na sua frente, lendo como habitualmente o seu jornal e bebendo um café perfumado.
A única nota diferente era o seu gorro de lã a tapar uma cabeça rapada fruto de duas quimioterapias recentes. Quem o diria? Ali estava forte e são parecendo o dono do mundo.
Do outro lado da mesa, Francisco, o filho de ambos, estava também mergulhado na leitura. De vez em quando, poisava o olhar no pai como que a dizer-lhe: ”Aguenta-te, meu velho, afinal és tu o meu herói e estes não morrem.”
Mariana reparava pela milésima vez nas suas parecenças físicas… e não só! Ambos teimosos, introvertidos mas com um coração maior que o mundo.
Era importante este encontro dos três. Voltaria a repetir-se? Aquietou-se absorvendo até ao infinito todo o encanto daquelas horas.
As janelas do café enquadravam uma paisagem maravilhosa: o sol mergulhava sobre o mar espalhando reflexos doirados. Respirou fundo. O cheiro a maresia, de que tanto gostava, trouxe-lhe recordações longínquas e felizes. Afinal onde ficaria África? Lá ao fundo, do outro lado do mar? Sentia sempre que o oceano era um elo de ligação. Conhecera Pedro lá nessa África inesquecível que lhe servira de berço e onde vivera os anos mais felizes da sua vida. Ali casaram também.
- Mãe, Mãe – Era a voz de Francisco – Desperta, perece que não estás cá... – E fazendo um pequeno sinal discreto apontava o pai.
Mariana ficou feliz ao reparar a segurança com que Pedro pagava os cafés, deixando a habitual gorjeta. Apeteceu-lhe chorar tal como dias antes quando se dera conta que Pedro não conseguira coordenar as moedas e precisara da ajuda do filho.
Estava-se tão bem ali que não lhe apetecia voltar para casa. Quereria eternizar aquela comunhão silenciosa dos três. Acreditava que Pedro desejaria o mesmo.
Francisco conduzia o carro e Pedro, a seu lado, bebia com avidez toda a paisagem do caminho.
Mariana, atrás, enrolada no seu agasalho, não tirava os olhos de Pedro. O que pensaria? Que pensamentos contraditórios não iriam na sua alma? Desde que fizera a primeira quimioterapia, Pedro nunca mais conduzira. Mas até aí, nas loucas corridas para os hospitais e especialistas, o volante nunca lhe saíra das mãos, talvez para se convencer, a si e à família que ainda era ele que tinha o controlo sobre a vida.
Quando chegaram a casa já estava frio. Silenciosamente Pedro acendeu a lareira como sempre o fazia quando chegava o Inverno. Pouco depois já a fogueira crepitava dando vida à sala.
As chamas dançavam tornando os rostos coloridos. Terrível e benéfico simultaneamente, o mistério do fogo em todos os tempos pareceu aos homens uma coisa sagrada. Sentiam-se unidos num silêncio que era angustiante e ao mesmo tempo a certeza de ainda estarem juntos. Tantas perguntas que os três gostariam de fazer; para além das recomendações e dos pedidos que Pedro não deixaria de fazer. Mas talvez não fosse ainda o momento.
O fogo estalava fazendo revigorar a esperança. De pé, junto à janela, Mariana olhava as dálias flamejantes que haviam conseguido resistir ao frio. Fora o Pedro quem as plantara. E uma lágrima teimosa descia-lhe pela face… Para o ano estariam ali a colorir aquele recanto do jardim? Mariana retirou-se para a cozinha a pretexto de fazer o jantar. Chorou convulsivamente e receou que Pedro a ouvisse da sala. Depois de pôr a mesa, passou pela casa de banho para lavar o rosto e retocar a pintura.
-Vamos jantar? - Disse num tom o mais alegre que pôde.
Pedro comeu bem e até elogiou o guisado. Mariana não conseguia comer, um nó demasiado apertado instalara-se na garganta. Não poderia falar sem que o dique rebentasse de novo.
Iria sucumbir? Mariana tinha fé e sabia que Deus seria paciente e misericordioso com todos. Nos píncaros da alegria e no fundo do poço de tantas cruzes, sempre sentira a sua mão de Pai.
Olhava o marido, bem constituído, peito largo de atleta onde a saúde morara sempre. Era invencível, quase imortal. Saía das quimioterapias como se nada fosse e ria-se ao ver as caras enfiadas da mulher e do filho. Lembrava-se de um pensamento de Adolfo Esquível: “ Creio na força dos fracos. Eles são um sinal de esperança”.
Pedro tornara-se mais calado do que habitualmente. Não parecia o lutador que fora sempre. Teria deposto já as armas esperando apenas pelo tempo? Não era o seu género. Quando caísse, cairia de pé, como as árvores. Não, Pedro ainda não enrolara a sua alma e sorria com aquele sorriso de criança com uma covinha na face que Mariana adorava. Sorria-lhe sempre quando não queria ou não conseguia falar (saberia algum dia?). Parecia dizer-lhe: “Acalma-te miúda, está tudo bem”
Sempre se refugiara em Pedro e não seria agora que ele lhe iria pregar a maior partida das suas vidas… A miúda, era a sua miúda e pronto. Pedro lembrar-se-ia dos medos nocturnos de Mariana e jamais a deixaria dormir sozinha.
“Vá Pedro, vamo-nos deitar. Precisas de descansar.” E já Pedro olhava Francisco com ar suplicante que este entendeu. O filho aos poucos tomava o lugar do pai. Era ele quem agora fechava as portas, tratava dos animais e das contas. Era ainda um jovem que Pedro adorava.
- Não te preocupes pai está tudo sob controle…
Na cama, Mariana apertou-se contra o Pedro que não se voltou para ela, talvez para esconder as lágrimas e a tortura que não lhe queria mostrar. Mariana acariciou-lhe a nuca e depositou ali um beijo e depois outro. Passou-lhe a mão pelos cabelos e trouxe uma mão cheia deles.
- Sim, já começou a cair. Pedro virou-se devagar e olhou-a sem dizer nada. A alma dos dois assomou-se naquele olhar cruzado e abraçaram-se em silêncio, misturando as suas lágrimas.
Mariana, muito depois, acreditava que aquele fora o momento das suas despedidas.
Desde o dia em que fora brutalmente desenganada por uma só palavra a vida dos três mudara totalmente, talvez em planos absolutamente diferentes. Entre eles não havia apenas a próxima distância mas sim a hipótese quase verdadeira de uma separação definitiva para um mundo desconhecido e do qual se sabia apenas ser sem regresso.
Mariana não conseguia dormir. Com os olhos marejados de lágrimas fixava o tecto, olhando sem ver os arabescos que o candeeiro de mesa ali desenhava todas as noites. Lembrava-se de outros Invernos em que, abraçada a Pedro este lhe dizia:
- Coitados daqueles que não têm aonde dormir e nós aqui tão quentinhos.
Admirara sempre a alma generosa de Pedro e amava-o mais por isso. Um dia, as suas almas estariam frente a frente, despidas de tudo e saberiam então que o seu amor tinha sido a coisa mais perfeita e bonita das suas vidas.
O martelar da chuva nos vidros tornava-se irritante. Já tinha perdido a poesia de antigamente. O vento rodopiava em torno da casa. O vaivém do pêndulo do relógio de parede marcava as brechazinhas que implacavelmente fazem os segundos e os minutos no tempo que ainda nos resta para viver. E Pedro? Quanto tempo mais seria? Um ano? Um dia? Precisamente um mês!
Pedro começara a alternar a quimioterapia com a radioterapia. Foi uma via-sacra dolorosa.
Deixou de falar ou pouco falava. Enfraquecia a olhos vistos.
- Levem-me para casa, estou farto de hospitais…
A casa era para Pedro o lugar seguro onde nada nem ninguém o atacaria. Mas houve necessidade de fazer uma transfusão de sangue e Pedro foi hospitalizado contrariado. Quando Mariana o foi ver o seu coração estalava de alegria. Voltara a ser o seu Pedro, desinchado, bonito, falando conscientemente.
Estás zangado comigo, querido? Eu sei que não gostas de hospitais mas não havia outra solução.
- Porque haveria de estar zangado? - E Pedro acariciou a face da mulher que se inclinara para o beijar.
Era um domingo de Março extremamente quente e Pedro tinha muita sede. À noite não quis jantar e pediu que o não obrigassem. Queixava-se com dores nas costas e Francisco compôs-lhe as almofadas, enquanto Mariana, abafada em lágrimas, pedia à enfermeira que lhe desse uma injecção de morfina.
Por deferência ou por pena, deixaram-nos ficar mais tempo. A despedida foi um “até amanhã querido”.
Mariana e Francisco passaram pela capela do Hospital e, abraçados, pediram ao Criador que Pedro não sofresse.
Manhãzinha cedo o telefone tocou, estridente. Mariana atendeu de imediato. Do outro lado da linha chegava-lhe a notícia mais terrível de toda a sua vida. Laconicamente disseram-lhe:
- O seu marido morreu às sete menos um quarto. - E desligaram.
Como é que um telefonema pode modificar assim a vida de uma mulher e de um jovem?
Francisco saíra do seu quarto e abraçado à mãe, dizia-lhe:
- Eu já estava à espera. Um dos médicos da equipa disse-me o que iria acontecer, alertando-me para que te preparasse porque tu estavas completamente alheia à verdade.
- Porque não me disseste? Eu teria ficado lá até ao fim!
- O que adiantaria Mãe?
O Pai teria a sua miúda a seu lado.
Mariana engoliu as lágrimas, tudo lhe parecia mentira.
Na Capela pediu para ficar sozinha com Pedro. Parecia adormecido. Estava lindo; as pestanas compridas sombreavam-lhe a face. Abraçou-se a ele e beijou-o infinitamente.
- Porquê Pedro, porque me deixaste? Não tinhas o direito de me fazer isto…
Mariana pareceu-lhe ouvir a voz de Pedro dizer:
- Afinal casei com uma mulher ou com uma miúda?
Francisco entrou e abraçou a mãe e com aquele sorriso de covinhas igual ao de Pedro disse-lhe:
- Não o podemos deixar ficar mal.
O tempo rolou e Mariana jurou que nunca mais poria crisântemos na campa dos seus amores. A mãe costumava-lhe dizer:
- Não gosto de crisântemos… São flores dos mortos.
E Pedro… Pedro adorava rosas, muitas rosas!