quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Crisântemos


Tantas estrelas!

A noite estava de prata polvilhada, como se fosse magia! Os crisântemos brancos pareciam descidos do céu, aguardando num balde o dia seguinte … de Todos os Santos!

Mariana aspirou os odores da noite que lhe despertavam tantas recordações. Estava-se bem na varanda. Os seus olhos abertos sobre a verdade que pressentia humedeciam-se.

Os lábios, entreabertos numa oração, sabiam a sal. Maquinalmente compôs o cabelo enquanto se interrogava se conseguiria dormir depois de ter ouvido a voz do Pedro magoada, revoltada, dizer-lhe: “Estou a morrer aos poucos”. Olhara espantada a face que tinha na sua frente e vira uma expressão de dor.

Teria andado distraída? Aonde estaria aquela ruga, marcando uma testa habitualmente lisa, que nunca vira antes?

A frase queimava-lhe a alma. Tinha a certeza que Pedro não mentia. Conhecia-o bem!

Por isso aquele cansaço que ultimamente notara nele… Começou a juntar as peças do puzzle…

Há quanto tempo se sentiria assim tão doente? Não lhe dissera nada, nem ao Francisco.

Pedro guardara para si a sua dor e tristeza para que os dois fossem felizes algum tempo mais.

Amou-o ainda mais, se possível! Lembrava-se agora que, no ano anterior, Pedro desfiara projectos para quando chegasse o momento da aposentação e, há pouco tempo atrás, afirmara que trabalharia até morrer. Não era habitual tanta contradição em Pedro.

Mariana angustiava-se mais à medida que a verdade se tornava mais clara. Iria ficar sem o seu Pedro? Não, não poderia ser. Tinha de haver outra explicação: trabalho e dedicação a mais no serviço ficando muitas vezes fora das horas de expediente, entre papéis e mais papéis…

Era isso: um esgotamento, nada que uns dias em casa com muito descanso e uma alimentação cuidada não resolvesse.

Contudo, a tranquilidade dissera adeus a Mariana. E aquela angústia que a cercava cada vez mais, sufocando-a... Já a conhecia tão bem.

Poisou o seu olhar nos crisântemos cor de prata… Seria um presságio?

- Estás a apanhar frio, vem deitar-te. – Disse-lhe Pedro por detrás dela. - Já é tarde e o Francisco deve estar a chegar.

A noite continuava linda mas havia no ar um doloroso lamento que Mariana recusava-se a ouvir!

……

Mariana olhava fixamente a estrada doirada que o sol projectava por cima de um mar azul tão quieto. Parecia uma tarde de Verão. Observava a marcha dos ponteiros do relógio e perguntava-se : “Quando será?” Desejaria que o tempo parasse e ficasse suspenso como uma nuvem branca e fofa num firmamento onde se cruzaram vidas felizes e realizadas.

Olhou Pedro com ternura, como o amava, santo Deus! Deliciou-se com a sua serenidade… Sempre fora um homem que pisara forte na vida e parecia-lhe que o medo nunca fora seu baluarte. Seria? Recordava-se de uma cena recente e tão dolorosa que nunca mais a deixaria…

Viu Pedro, o seu Pedro, com a cabeça entre as mãos perguntando: “ Porquê a mim, meu Deus, porquê a mim?”

Mariana desfeita por dentro num turbilhão de sentimentos, de revolta, de piedade e sobretudo muito amor, contendo as lágrimas, apenas soubera dizer-lhe: “E os outros, meu querido, também fazem essa pergunta…”

Mariana dava-se conta agora de como fora pobre e esfarrapado o seu consolo. Tão esfarrapado como estava agora o seu coração. Sacudiu a cabeça tentando afastar pensamentos tão negativos; afinal, ainda havia uma esperança e a prova é que Pedro estava ali na sua frente, lendo como habitualmente o seu jornal e bebendo um café perfumado.

A única nota diferente era o seu gorro de lã a tapar uma cabeça rapada fruto de duas quimioterapias recentes. Quem o diria? Ali estava forte e são parecendo o dono do mundo.

Do outro lado da mesa, Francisco, o filho de ambos, estava também mergulhado na leitura. De vez em quando, poisava o olhar no pai como que a dizer-lhe: ”Aguenta-te, meu velho, afinal és tu o meu herói e estes não morrem.”

Mariana reparava pela milésima vez nas suas parecenças físicas… e não só! Ambos teimosos, introvertidos mas com um coração maior que o mundo.

Era importante este encontro dos três. Voltaria a repetir-se? Aquietou-se absorvendo até ao infinito todo o encanto daquelas horas.

As janelas do café enquadravam uma paisagem maravilhosa: o sol mergulhava sobre o mar espalhando reflexos doirados. Respirou fundo. O cheiro a maresia, de que tanto gostava, trouxe-lhe recordações longínquas e felizes. Afinal onde ficaria África? Lá ao fundo, do outro lado do mar? Sentia sempre que o oceano era um elo de ligação. Conhecera Pedro lá nessa África inesquecível que lhe servira de berço e onde vivera os anos mais felizes da sua vida. Ali casaram também.

- Mãe, Mãe – Era a voz de Francisco – Desperta, perece que não estás cá... – E fazendo um pequeno sinal discreto apontava o pai.

Mariana ficou feliz ao reparar a segurança com que Pedro pagava os cafés, deixando a habitual gorjeta. Apeteceu-lhe chorar tal como dias antes quando se dera conta que Pedro não conseguira coordenar as moedas e precisara da ajuda do filho.

Estava-se tão bem ali que não lhe apetecia voltar para casa. Quereria eternizar aquela comunhão silenciosa dos três. Acreditava que Pedro desejaria o mesmo.

Francisco conduzia o carro e Pedro, a seu lado, bebia com avidez toda a paisagem do caminho.

Mariana, atrás, enrolada no seu agasalho, não tirava os olhos de Pedro. O que pensaria? Que pensamentos contraditórios não iriam na sua alma? Desde que fizera a primeira quimioterapia, Pedro nunca mais conduzira. Mas até aí, nas loucas corridas para os hospitais e especialistas, o volante nunca lhe saíra das mãos, talvez para se convencer, a si e à família que ainda era ele que tinha o controlo sobre a vida.

Quando chegaram a casa já estava frio. Silenciosamente Pedro acendeu a lareira como sempre o fazia quando chegava o Inverno. Pouco depois já a fogueira crepitava dando vida à sala.

As chamas dançavam tornando os rostos coloridos. Terrível e benéfico simultaneamente, o mistério do fogo em todos os tempos pareceu aos homens uma coisa sagrada. Sentiam-se unidos num silêncio que era angustiante e ao mesmo tempo a certeza de ainda estarem juntos. Tantas perguntas que os três gostariam de fazer; para além das recomendações e dos pedidos que Pedro não deixaria de fazer. Mas talvez não fosse ainda o momento.

O fogo estalava fazendo revigorar a esperança. De pé, junto à janela, Mariana olhava as dálias flamejantes que haviam conseguido resistir ao frio. Fora o Pedro quem as plantara. E uma lágrima teimosa descia-lhe pela face… Para o ano estariam ali a colorir aquele recanto do jardim? Mariana retirou-se para a cozinha a pretexto de fazer o jantar. Chorou convulsivamente e receou que Pedro a ouvisse da sala. Depois de pôr a mesa, passou pela casa de banho para lavar o rosto e retocar a pintura.

-Vamos jantar? - Disse num tom o mais alegre que pôde.

Pedro comeu bem e até elogiou o guisado. Mariana não conseguia comer, um nó demasiado apertado instalara-se na garganta. Não poderia falar sem que o dique rebentasse de novo.

Iria sucumbir? Mariana tinha fé e sabia que Deus seria paciente e misericordioso com todos. Nos píncaros da alegria e no fundo do poço de tantas cruzes, sempre sentira a sua mão de Pai.

Olhava o marido, bem constituído, peito largo de atleta onde a saúde morara sempre. Era invencível, quase imortal. Saía das quimioterapias como se nada fosse e ria-se ao ver as caras enfiadas da mulher e do filho. Lembrava-se de um pensamento de Adolfo Esquível: “ Creio na força dos fracos. Eles são um sinal de esperança”.

Pedro tornara-se mais calado do que habitualmente. Não parecia o lutador que fora sempre. Teria deposto já as armas esperando apenas pelo tempo? Não era o seu género. Quando caísse, cairia de pé, como as árvores. Não, Pedro ainda não enrolara a sua alma e sorria com aquele sorriso de criança com uma covinha na face que Mariana adorava. Sorria-lhe sempre quando não queria ou não conseguia falar (saberia algum dia?). Parecia dizer-lhe: “Acalma-te miúda, está tudo bem”

Sempre se refugiara em Pedro e não seria agora que ele lhe iria pregar a maior partida das suas vidas… A miúda, era a sua miúda e pronto. Pedro lembrar-se-ia dos medos nocturnos de Mariana e jamais a deixaria dormir sozinha.

“Vá Pedro, vamo-nos deitar. Precisas de descansar.” E já Pedro olhava Francisco com ar suplicante que este entendeu. O filho aos poucos tomava o lugar do pai. Era ele quem agora fechava as portas, tratava dos animais e das contas. Era ainda um jovem que Pedro adorava.

- Não te preocupes pai está tudo sob controle…

Na cama, Mariana apertou-se contra o Pedro que não se voltou para ela, talvez para esconder as lágrimas e a tortura que não lhe queria mostrar. Mariana acariciou-lhe a nuca e depositou ali um beijo e depois outro. Passou-lhe a mão pelos cabelos e trouxe uma mão cheia deles.

- Sim, já começou a cair. Pedro virou-se devagar e olhou-a sem dizer nada. A alma dos dois assomou-se naquele olhar cruzado e abraçaram-se em silêncio, misturando as suas lágrimas.

Mariana, muito depois, acreditava que aquele fora o momento das suas despedidas.

Desde o dia em que fora brutalmente desenganada por uma só palavra a vida dos três mudara totalmente, talvez em planos absolutamente diferentes. Entre eles não havia apenas a próxima distância mas sim a hipótese quase verdadeira de uma separação definitiva para um mundo desconhecido e do qual se sabia apenas ser sem regresso.

Mariana não conseguia dormir. Com os olhos marejados de lágrimas fixava o tecto, olhando sem ver os arabescos que o candeeiro de mesa ali desenhava todas as noites. Lembrava-se de outros Invernos em que, abraçada a Pedro este lhe dizia:

- Coitados daqueles que não têm aonde dormir e nós aqui tão quentinhos.

Admirara sempre a alma generosa de Pedro e amava-o mais por isso. Um dia, as suas almas estariam frente a frente, despidas de tudo e saberiam então que o seu amor tinha sido a coisa mais perfeita e bonita das suas vidas.

O martelar da chuva nos vidros tornava-se irritante. Já tinha perdido a poesia de antigamente. O vento rodopiava em torno da casa. O vaivém do pêndulo do relógio de parede marcava as brechazinhas que implacavelmente fazem os segundos e os minutos no tempo que ainda nos resta para viver. E Pedro? Quanto tempo mais seria? Um ano? Um dia? Precisamente um mês!

Pedro começara a alternar a quimioterapia com a radioterapia. Foi uma via-sacra dolorosa.

Deixou de falar ou pouco falava. Enfraquecia a olhos vistos.

- Levem-me para casa, estou farto de hospitais…

A casa era para Pedro o lugar seguro onde nada nem ninguém o atacaria. Mas houve necessidade de fazer uma transfusão de sangue e Pedro foi hospitalizado contrariado. Quando Mariana o foi ver o seu coração estalava de alegria. Voltara a ser o seu Pedro, desinchado, bonito, falando conscientemente.

Estás zangado comigo, querido? Eu sei que não gostas de hospitais mas não havia outra solução.

- Porque haveria de estar zangado? - E Pedro acariciou a face da mulher que se inclinara para o beijar.

Era um domingo de Março extremamente quente e Pedro tinha muita sede. À noite não quis jantar e pediu que o não obrigassem. Queixava-se com dores nas costas e Francisco compôs-lhe as almofadas, enquanto Mariana, abafada em lágrimas, pedia à enfermeira que lhe desse uma injecção de morfina.

Por deferência ou por pena, deixaram-nos ficar mais tempo. A despedida foi um “até amanhã querido”.

Mariana e Francisco passaram pela capela do Hospital e, abraçados, pediram ao Criador que Pedro não sofresse.

Manhãzinha cedo o telefone tocou, estridente. Mariana atendeu de imediato. Do outro lado da linha chegava-lhe a notícia mais terrível de toda a sua vida. Laconicamente disseram-lhe:

- O seu marido morreu às sete menos um quarto. - E desligaram.

Como é que um telefonema pode modificar assim a vida de uma mulher e de um jovem?

Francisco saíra do seu quarto e abraçado à mãe, dizia-lhe:

- Eu já estava à espera. Um dos médicos da equipa disse-me o que iria acontecer, alertando-me para que te preparasse porque tu estavas completamente alheia à verdade.

- Porque não me disseste? Eu teria ficado lá até ao fim!

- O que adiantaria Mãe?

O Pai teria a sua miúda a seu lado.

Mariana engoliu as lágrimas, tudo lhe parecia mentira.

Na Capela pediu para ficar sozinha com Pedro. Parecia adormecido. Estava lindo; as pestanas compridas sombreavam-lhe a face. Abraçou-se a ele e beijou-o infinitamente.

- Porquê Pedro, porque me deixaste? Não tinhas o direito de me fazer isto…

Mariana pareceu-lhe ouvir a voz de Pedro dizer:

- Afinal casei com uma mulher ou com uma miúda?

Francisco entrou e abraçou a mãe e com aquele sorriso de covinhas igual ao de Pedro disse-lhe:

- Não o podemos deixar ficar mal.

O tempo rolou e Mariana jurou que nunca mais poria crisântemos na campa dos seus amores. A mãe costumava-lhe dizer:

- Não gosto de crisântemos… São flores dos mortos.

E Pedro… Pedro adorava rosas, muitas rosas!


domingo, 25 de outubro de 2009

Delicadeza

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Há muita gente que confunde sinceridade e frontalidade com má educação e falta de delicadeza. Muitas vezes quando oiço o noticiário das nossas televisões ou leio os jornais diários dou-me conta de quanta miséria existe por todo esse mundo, talvez porque nos falte a todos essa qualidade preciosa que é a delicadeza. Outros conhecem-na como civismo. Eu gosto mais de lhe chamar delicadeza porque nasce no espírito e perpetua-se na vida.
Nem tudo o que é verdade ou supostamente verdade pode ser dito às escancaras em nome dessa frontalidade que muitos anunciam ter. Quanta coisa é dita propositadamente para magoar, desrespeitar os outros, sem pensar até onde podem ir as “espadas desembainhadas” com toda a sinceridade? Ser delicado, supõe ser caridoso e a delicadeza é a flor mais bela do jardim das virtudes.


Delicadeza implica calar o que não é necessário, possivelmente até nem é verdade e de certeza que não é bom – as três virtudes da historiazinha cheia de moral que vinha no nosso manual de Português do 2º ano do Liceu, quem se lembra? O filho quando chega a casa esbaforido para contar uma novidade sobre alguém, a mãe ponderada e sábia disse-lhe: “Meu filho, antes de dizeres o que quer que seja, pensa primeiro. – É verdade o que vais contar? Será mesmo necessário dizê-lo? E é bom o que te trás tão alvoroçado? – O filho pensativo e mais calmo respondeu-lhe – Bom não é de certeza, também não sei se será necessário contar-te e... pensando bem, até nem sei se é verdade... – Então meu filho a delicadeza ordena-te que te cales.”
Delicadeza... como anda arredia das nossas vidas e do mundo inteiro. Ser delicado, inalteravelmente delicado, mesmo perante as indelicadezas dos outros – eis uma norma singela de efeitos incalculáveis.
Ser delicado é não ser arrogante e difícil quando se trata de perdoar:
- Eu cá sou sincero!!! - Exclamam muitos.
- Serás mesmo?



quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O Jantar


Dizia-se que tinha sido manequim em Lisboa. Era uma mulher alta, muito nova ainda, de cabelo ruivo comprido que, normalmente, usava entrançado disposto à volta da cabeça, como se fosse uma deusa grega. No seu rosto, demasiado sardento, brilhavam uns olhos cinzentos esverdeados, que mudavam de cor conforme a luz do dia os alagava calidamente.

Pouco mais se sabia desta bela mulher e a cidade equacionava possibilidades, dúvidas e probabilidades. Em meios pequenos não são admissíveis grandes margens de falhas e erros. Por isso fervilhava-se de curiosidade, conjecturando histórias de todo o género.
Ele, era viúvo, um pouco mais velho que ela e aproveitara umas férias a Portugal para levar companhia para Quelimane. Aliás, era prática comum os solteirões da terra, aproveitarem as suas licenças graciosas na Metrópole para resolverem as suas situações sentimentais ou amorosas. Alguns, tinham vivido anos e anos com mulheres de cor com filhos até mas, quando chegava o momento de constituir família, era em Portugal que encontravam solução.
Não era por aí que vinha o espanto. Já tantos o tinham feito antes. Era antes o mistério e o silêncio que envolvia o novo par na sociedade do Chuabo. Ele era uma pessoa muito conhecida, muito vivido com amigos em todos os extractos sociais. E até era simpático. Todos estes núcleos estavam pois à espera de uma apresentação formal do novo estado civil do amigo, talvez até um jantar social, já que Quelimane era a terra das festas, para apresentar a jovem esposa à comunidade. Tal nunca veio a acontecer.
Quando não se usa de abertura, cria-se, normalmente, um campo vastíssimo para a especulação. E elas surgiam como é evidente: “Que ele ainda não tinha esquecido a primeira esposa, o grande amor da sua vida”; ”Que ele tinha muitos ciúmes desta nova companhia por ela ser muito bonita e que não estava disposto a apresentá-la aos diversos amigos”; “Que era mulher moderna habituada a outro tipo de vida e de sociedade e que se sentiria mal num meio tão pequeno”… E não ficavam por aqui os enredos urdidos à mesa do café e nas reuniões de convívio dos Clubes… Alguns, chegavam a ser mirabolantes, de outro mundo.
Por coincidência, ou não, a dama misteriosa passou a ser nossa vizinha numa das muitas casas alugadas pelo meu Pai até termos a Casa, como eu costumo dizer referindo-me à nossa casa.
Casas pegadas, paredes meias, o mesmo muro a dividir os dois quintais e a pequena varanda da frente, toda corrida, e que tinha como única divisória dois grandes vasos com fetos que a minha mãe tinha colocado para determinar o nosso espaço.
Ao jantar, nós e o meu pai, bombardeávamos literalmente a minha mãe com perguntas: “Viste a nova vizinha? O que é que ela faz todo o dia metida em casa, uma mulher tão nova? Tem empregados? E o marido sai cedo de casa?”
A minha mãe ria-se com tanta pergunta:
- Mas vocês pensam que eu não tenho mais nada que fazer? Não sou da polícia, portanto meninos se quiserem saber, perguntem ao marido. Por acaso, hoje de manhã estava lá fora na varanda e ele passou e cumprimentou-me simpaticamente como é habitual. Se me quiser dizer alguma coisa, a iniciativa deve partir dele.
A minha mãe tinha razão.
Mas não demorou muito tempo para que as vizinhas se conhecessem. Nessa casa e, naquela época, tanto as casas de banho como as cozinhas ficavam no exterior. No nosso caso frente a um quintal enorme, onde tínhamos uma horta esplendorosa seguida de um pequeno pomar. Adorava aquele quintal. Por ser grande, proporcionava-nos brincadeiras e aventuras com os nossos amigos que, nas férias, caíam todos na nossa casa.
Um dia, quando a minha mãe vinha do quintal, ouviu do outro lado do muro um tímido “bom-dia”. Foi o primeiro contacto que teve com a dama misteriosa.
Ao almoço a minha mãe deu-nos a grande notícia:
- Já conheci a nova vizinha. É simpática, muito bonita e chama-se Sara. Não me parece muito experiente como dona de casa. O cozinheiro é que lhe estava a dizer o que ia fazer de almoço e o que é que precisava para a execução do mesmo. Ofereci-me para a ajudar em tudo que precisasse.
Lentamente a Sara foi-se aproximando da minha mãe procurando um porto de abrigo. Insegura por natureza e pelas circunstâncias, precisava de afectos e de colo. Estiolava na solidão, sem um coração que a acompanhasse, sem sorrisos e braços que a acolhessem.
Muitas vezes, pelo muro, passaram não só o carinho e a palavra, como refeições inteiras para evitar azedumes do marido. Não é que ele fosse má pessoa, tinha era escolhido mal a companheira para a vida… jovem e inexperiente em tudo.
O tempo foi passando e ela habitou-se um pouco àquela clausura. Contou ao marido que tinha encontrado uma amiga na minha mãe, o que ele aplaudiu com entusiasmo.
Mas, tal como as plantas sem água, pouco a pouco, insensivelmente, foi murchando por dentro, perdendo o viço e a seiva. Não tinha motivação.
Os dias eram demasiado grandes… muitas horas vazias, sem nada para fazer.
E os vícios foram chegando devagarinho como salteadores. Primeiro o cigarro e depois a bebida. O silêncio era uma muralha forte onde se desfaziam as ondas da força de vontade e do amor-próprio.
Os empregados negros tinham pena dela e iam, às escondidas do marido, comprar-lhe o que precisava para sobreviver. Lentamente a degradação física começou a manifestar-se.
À noitinha, quando o calor apertava, sentava-se nos pequenos degraus da frente, com um cigarro numa mão e na outra uma garrafa de cerveja.
Do outro lado dos fetos, a minha mãe perguntava-lhe:
- Sara, já fez o jantar para o seu marido? Ele deve estar a chegar!
- Está tudo pronto e estou aqui à espera dele.
Mas nessa noite o marido chegou altas horas e Sara continuava sentada à porta, bebendo e cantando o Fado de Coimbra. Nunca soubemos o motivo dessa escolha sendo ela de Lisboa…
Nas horas paradas e silenciosas ouviram-se altercações e depois um grande estrondo e de novo, um silêncio arrepiante.
- Matou-a! É melhor chamarmos a polícia. - Disse a minha mãe.
- Tem calma! Da maneira como ela estava pode ter sido apenas um tombo… Vamos esperar!
E os ouvidos colaram-se às paredes, a respiração sustida, a tentar adivinhar o que se passava do lado de lá. De repente, um ronco profundo de quem está bem ferrado no sono descansou os meus pais que, já madrugada, recolheram ao seu quarto.
Sara ficou sem a mesada que o marido lhe dava para as despesas da casa. Deixava-lhe todas as manhãs o estritamente necessário para comprar a comida daquele dia.
- Diz ao cozinheiro que vá ao talho do Gentil comprar carne e faz-me refeições em condições.
Com este método, o marido pensava ter a mulher mais vigiada. Pensava também que, sem dinheiro de sobra, Sara ver-se-ia obrigada a deixar o vício da bebida.
Mas há furacões que entram na nossa vida estilhaçando tudo. Não poupam nada. E o vício precisa de ser alimentado e fecha-se num círculo cada vez mais apertado.
Sara começou a vender algumas roupas suas. Gastava o que tinha e o que não tinha.
Um dia já não havia mais roupa para vender, nem dinheiro para ir ao talho.
Sara lembrou-se de uma calças de fazenda do marido, muito boas e que era raro ele vesti-las.
Chamou o cozinheiro:
- Vai depressa vender estas calças e traz carne, pão e fruta para fazer um bom jantar.
O empregado só abanava a cabeça, discordando de tudo aquilo.
O jantar cheirava deliciosamente. Sara pôs a melhor toalha que tinha e até acendeu umas velas.
O marido chegou mais cedo para o jantar. Tinha uma reunião importante e tinha de se despachar.
- Vou tomar banho e venho já.
Sara e o cozinheiro davam os últimos retoques à mesa.
Nisto, meio nu, o marido apareceu na sala desesperado e perguntou ao empregado:
- Aonde estão as minhas calças de fazenda?
- Aqui, patrão, aqui! - E apontava a bela carne assada rodeada de batatinhas.


sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Plágio


Desde muito miúda que o escrever era uma necessidade. Lembro-me que na casa velha, por detrás do Benfica, na Rua Heróis da Zambézia, o pequeno grupo da Escola - quase todos vizinhos – se juntava na pequena praceta, adoptada por nós como o local ideal para as nossas brincadeiras, para ouvir as histórias que eu inventava. Escrevia também pequenas peças de teatro que o grupo representava sob a minha orientação. Tinha um pouco espírito de líder. A minha Mãe, com a sua doce paciência, cedia-nos a varanda, com muita luz nas suas grandes janelas com rede mosqueteiro… por causa dos mosquitos, como era normal nas casas mais antigas de Quelimane. O meu Pai também participava nesta encenação, construindo um pequeno palco com caixotes fortes que trazia do seu estabelecimento comercial.

O meu irmão, que sempre teve jeito para o desenho e pintura, elaborava os cenários. Lembro-me de uns muito bonitos pintados com umas grandes rosas. Julgo que ainda os tenho guardados na arca da saudade. A minha Mãe comprava chita barata e fazia as cortinas do palco. A assistência era composta pelos pais de todos os “artistas” intervenientes e ainda por alguns vizinhos e amigos. Chegávamos a ter lotação esgotada com bilhetes a cinco escudos cada um, se bem que um ou outro “benfeitor” dobrasse a parada… para ajudar!
E não faltavam as três pancadinhas de Moliére a que dávamos extrema importância.
Pois o gosto pela escrita, cresceu comigo. No colégio, a disciplina que eu mais gostava, era o Português. Adorava interpretar, ler e fazer composições. Na altura andava ao despique com um colega de turma… As melhores redacções eram lidas nas aulas. Era um vira autêntico: ora agora eu, ora agora o colega (lembra-se “Senhor Doutor”?).

Colégio Nuno Álvares - Quelimane

Detestava Matemática! Os números enfastiavam-me e as letras faziam-me sonhar.

Fiz um acordo com alguns colegas, os “barras” na malfadada disciplina… Eles ajudavam-me no intricado malabarismo dos números e eu fazia-lhes as redacções durante todo o ano.
Cheguei a fazer sete, ao mesmo tempo, sobre o mesmo tema e nenhuma repetida, o que levava a freira a nunca desconfiar.
Um dia, a minha “fama” tinha chegado longe (à turma do lado…) um colega mais adiantado que eu veio ter comigo e disse-me:
- Ouvi dizer que gostas de fazer redacções e queria pedir-te um favor. (Devo ter crescido uns centímetros na minha vaidade…) Imagina que a minha professora de Português deu-nos para o fim-de-semana um tema disparatado para fazer redacções: “Diálogo entre uma noiva e o seu anel de noivado”. Ridículo!
- Achas? Eu penso que é lindíssimo. Que pena a minha não nos dar esse tema. Faço-te a composição com muito gosto.
Esse fim-de-semana, subi às nuvens com aquele diálogo onde eu me imaginava ser a noiva.
Na segunda-feira, muito antes da primeira aula, estava à porta do colégio para entregar a redacção e dar-lhe tempo para ele a passar com a sua letra.
Passado algum tempo, ele veio ter comigo com uma folha na mão, para me mostrar, onde se lia em letra maiúscula e a vermelho : EXCELENTE!
- Fui o único. Obrigada pela tua ajuda.
Claro que eu também fiquei feliz.
No ano seguinte, eu era finalista e apanhei a professora de Português do meu colega, o que me deixou radiante porque era considerada a melhor em todo o colégio.


Quase no final do ano lectivo, já cansada de tantos pontos (hoje diz-se testes…) e da matéria a rever para os exames, ela espeta-nos com o tema “Diálogo de uma noiva com o seu anel de noivado”. Não arranjava tempo para coordenar as ideias, assoberbada com montanhas de matéria para rever. Pensei: o colega já cá não está (tinha ido para Lourenço Marques continuar os estudos) e ao fim e ao cabo, moralmente, a redacção é minha e não estou a tirar nada a ninguém. E, com tantas redacções que ela lê em várias turmas, possivelmente já nem se lembraria da “minha”.
Vai daí passei a limpo o que tinha escrito há um ano atrás.
Quando a recebi, corrigida, ansiosamente procurei o Excelente, mas… em letra bem pequena estava um simples bom!
No intervalo falei com a freira, procurando saber o que é que ela não tinha gostado na minha redacção.
- Maria da Graça, tenha paciência. A sua redacção eu já a li em qualquer lado, não posso precisar onde, mas é um autêntico plágio!
A solidariedade e a amizade recomendaram o meu silêncio.

domingo, 11 de outubro de 2009

Os Meus Poetas (V)



“Os meus poetas”, sou eu quem os escolhe, não só pela fama gigantesca de alguns que aqui postei mas, acima de tudo, com e pela “relação” que tenho com eles. Os poetas não se “medem” nem pela fama e muito menos pela quantidade de livros editados. António Nobre (um dos Maiores, na minha óptica) publicou apenas um livro, “Só”:


“Tende cautela, não vos faça mal… que é o livro mais triste, que há em Portugal!”


Talvez eu goste mais da Poesia do que dos Poetas. E quantas, quantas folhas pejadas de pequenas jóias não estão por aí em gavetas fechadas, esquecidas no tempo, à espera de um momento que talvez nunca chegue...


Hoje trago um jovem poeta desses que escrevem com alma, com dor, a sua teia de vida. Chama-se Nuno Francisco Pinto Pereira Machado. Claro que é especial para mim! Mas não é por isso que aqui está! Mas sim pela qualidade daquilo que escreve.

Este poema é do seu livro “Por uma Rosa“ (nunca editado)! Fui buscar esta semente deitada à terra já há algum tempo. Pacientemente, espero a impaciência dos girassóis prontos a romper a terra. Crescerão ao ritmo das pulsações de um coração jovem. Nós sabemos, eu e tu, a nossa força armazenada muitas vezes pelas intempéries que nos alagaram. De cada sulco que arde no nosso peito e que não há água que chegue para matar tanta sede…

Sabemos, eu e tu, que o que mais queremos é o amor lembrado e o que está ainda por vir…

São sensações pelas quais lutas e esperas, serão outras e descobrirás que todos os dias acontecem coisas importantes… As palavras edificadas, serão beijos que nos molham a face e sentiremos o odor antecipado dos girassóis semeados ontem….



Sinuosas Sensações



Já nem penso no que talvez me espere;
Não sonho nem acredito na felicidade,
Apenas lamento o que cada véspera sugere:
Que ser feliz não se enquadre na minha realidade…

O dia seguinte é apenas igual ao anterior…
Nada nasce, nada morre, apenas se mantém toda a dor!
A cada nova aventura que se me alevanta,
Apenas a velha Desilusão já não se espanta…

E querem-me para Raiva, para Ódio, para Dor:
Os Deuses não descansam enquanto não tiver,
Um posto consentâneo, onde para além de sofrer,

Possa contribuir para um novo reino de terror…
E é assim, triste, estar só, e não ter para consorte,
Nem a Morte, senhores, nem a Morte…


Porto, 6/99




terça-feira, 6 de outubro de 2009

A Dor de Cabeça


Com a chegada simultânea de duas dezenas de novos especialistas, o velhinho Hospital Distrital de Matosinhos passou a ter, embora ainda com muitas carências, Serviço de Urgência em lugar da caricata situação de um único médico escalado para o ‘Atendimento Urgente’. A escala tanto podia recair num internista como num ortopedista ou estomatologista. E a atestar a precariedade da situação, havia no largo em frente dois lugares marcados e cobertos com a indicação, “médico de serviço” e “capelão”.
A população conhecia todas estas limitações e, quando a situação urgia, demandava directamente o Hospital de S. João, não perdendo tempo com paragens intermédias inúteis.
Gradualmente, com a remodelação da Urgência, os utentes começaram a aparecer em catadupa, desmesuradamente.
Era uma quarta-feira do Verão de 1982. Chefiava aquela equipa há um ano, funções que haveria de manter por mais doze. A afluência diminuta causava estranheza. Talvez se devesse à época de férias e à hora pós-prandial. A avalanche surgiria naturalmente ao fim da tarde, no regresso a casa após um dia de trabalho.
Atravessava o pequeno parque dianteiro em direcção ao bar, para a ‘cafeinização’ das horas vagas, quando o silêncio e a modorra do estio foram dilacerados pelo som estridente e angustiante de uma sirene, e pelo guinchar de pneus de uma ambulância no asfalto seco e quente.
Parámos, eu e o interno que me acompanhava, na expectativa taquicardizante de quem desembrulha uma caixinha de surpresas. Assistimos, perplexos, à saída de dois enfermeiros, ladeando um homem na casa dos cinquenta, que caminhava escorreito, no mesmo passo decidido e desembaraçado, e recusando com gestos a pretensa ajuda dos seus acompanhantes.
Fixei aquele rosto que trazia estampado o sorriso estranho e fixo de uma careta.
- Tanto estardalhaço para nada! – disse o meu colega.
- É mesmo! Às tantas vem com uma dor de dentes e entram por aí como Fangios, para fazer o gosto ao dedo, neste caso ao pé. São os ‘aceleras’! – comentei eu.
Não demorámos mais que dez minutos no café, talvez nem tanto. Uma certa inquietação pela cena a que assistira e por aquele rosto de expressão inexprimível, apressou o regresso.
Transposta a porta da Urgência, o cheiro intensamente acre e já familiar de organofosforados irritou-me os olhos e a garganta, e o aparato de médicos e enfermeiros envergando batas, máscaras, barretes, luvas, turbilhonando em redor daquele homem com quem cruzara o olhar, confirmava a intoxicação por ‘veneno do escaravelho da batata’.
A vítima desnudada, apenas com um lençol cobrindo a zona pudenda, sentada numa cadeira mas resvalando num equilíbrio instável, cabeça e braços pendentes, mostrava uma brancura e magreza pronunciadas. Configurava Cristo descido da cruz.
Acabara de ser submetido a uma penosa lavagem gástrica. As secreções abundantes e os suores profusos eram constantemente limpos, numa tentativa de evitar a reabsorção cutânea do veneno excretado. Administravam-se antídotos, atropina e medidas de suporte. Ainda ouvi uma enfermeira perguntar-lhe:
- Mas, oh homem, porque é que fez isto?
A pergunta parece tê-lo feito reanimar e, embora com algum esforço, respondeu sem vacilar:
- Todos os meus amigos se queixam permanentemente de dores de cabeça. Um dia, disse-lhes: “Não sei o que isso é, mas no dia em que me doer, mato-me!” Hoje tive dores de cabeça e olhe... foi um copo do ‘remédio’ do escaravelho cheiinho até cima, duma assentada! – indicando com o polegar e o indicador direitos a altura do líquido emborcado.
Numa total exposição da fragilidade humana, encolheu os ombros, olhou-nos para além de nós com um sorriso absurdo, irreal e assustador. Suspirou fundo, e de repente aquele corpo magro e translúcido, escorrendo baba e suor, convulsionou violentamente como um presidiário condenado à electrocussão, perante o horror impotente dos que assistiam.
Subitamente, ‘sossegou’ para sempre.

- Pinto Pereira