Desígnios

Nos anos cinquenta, a nossa casa era um autêntico Hotel para os amigos do interior da Zambézia que vinham a Quelimane a consultas médicas, às compras ou até mesmo de férias!
A minha Mãe gostava mais de lhe chamar Pousada!
Os hotéis e pensões não abundavam nessa época e para os meus pais era ponto de honra acolher os amigos.
Nós éramos miúdos e adorávamos aqueles momentos agitados de um entra e sai quase constante… Parecia-nos que se abriam portas e janelas para o mundo… pelo menos, para um outro mundo.
Gostávamos daquele casal velhos conhecidos dos meus pais que, às vezes, também traziam os filhos. Nessas ocasiões era uma festa celebrada com risos e jogos… e para a minha Mãe, era uma dor de cabeça.
Um dia, a senhora veio só… parecia doente e agitada. Mais tarde, muito mais tarde, a minha Mãe explicar-me-ia que a senhora estava grávida e de uma gravidez indesejada.
Já tinha filhos que chegassem… - era a sua explicação!
A minha Mãe, falava-lhe na vida, na maternidade e no direito daquele filho nascer. Mas eram palavras que escorriam como água corrente da torneira…
Durante alguns dias a minha Mãe pensou que tinha ganho a luta, até que, numa manhã talvez sem perfumes e embaciada, ela perguntou-lhe:
- Sabe de uma parteira que faz uns serviços?…
A minha Mãe sagaz e penetrante respondeu-lhe:
- Não conheço e não sei bem do que fala…
- Sabe… mas não me quer ajudar!
- Gostaria que entendesse o valor de uma vida e o mistério que lhe é oferecido… Pense nuns olhos grandes, numas bochechinhas cor de rosa e nuns bracinhos tenros à procura de amor…
Mas há dias em que o Diabo dá uma volta pelo mundo para ver quem há-de tentar…
A senhora não veio almoçar, chegou já ao cair da noite com um ar aliviado…
A culpa nem sempre é dos outros ou, pelo menos, só dos outros… e a minha Mãe pensou que devia ter saído com ela…
À noite a senhora sentiu-se mal com dores no ventre e fechou-se no quarto de banho.
A minha mãe batia constantemente à porta numa aflição que nós não entendíamos…
Os outros, não têm a mesma medida que nós, ou esquecem-se ou nem sempre advinham as nossas expectativas…
De repente a senhora abriu a porta do quarto de banho com um ar vitorioso chamando a minha mãe:
- Venha, venha ver…
Um pequenino ser, um feto já completo boiava nas águas da sanita… e como se não fosse nada com ela afirmou:
-Era um menino - e preparava-se para puxar a água.
A minha mãe deitou-lhe a mão e disse-lhe revoltada:
-Não, não o permitirei! Na minha casa, nunca! - Pegou numa toalha e no pequeno feto morto, benzeu-o e levou-o para lhe dar uma sepultura condigna.
A desilusão da minha mãe transformara-se em revolta e olhara a amiga com amargura em face daquilo que assistira e, mais tarde, pediu ao meu pai que nunca mais queria aquela senhora em nossa casa.
O tempo passou e um dia ela telefonou à minha mãe pedindo-lhe que a recebesse pois precisava muito de vir a Quelimane. Contrariada, a minha mãe consentiu.


Quando chegou vinha com um ar cansado e uma vincada sombra nos olhos.
- Estou outra vez grávida – anunciou.
Não era preciso dizê-lo porque o ventre já proeminente o tinha revelado.
- Estou no 7º mês de gravidez e fiz tudo o que podia para o eliminar – disse com raiva. E continuava com as suas explicações como se narrasse um filme…
-Dei murros na barriga, andei quilómetros e quilómetros de bicicleta sob sol e chuva torrencial para ver se abortava e…nada!
A vida tem mais imaginação do que os nossos projectos desmedidos e cruéis.
Aquele ser iria nascer contra tudo e contra todos!
A minha mãe disse-lhe:
- Vai telefonar ao seu marido avisando-o que a não venha buscar. Ficará aqui até essa criança nascer…
A senhora notou que a minha mãe seria firme. A vida obriga-nos, tantas vezes e em tantas ocasiões a tomar atitudes que não deixem dúvidas.
…E nasceu uma linda menina, a estrelinha no meio de tantos rapazes!
Os anos passaram e mesmo as desilusões não fazem o trabalho que apenas o tempo conseguirá realizar.
A senhora ficou viúva, os rapazes partiram para a Metrópole para continuarem os estudos e ela ficou só com a filha indesejada.
Um dia, veio a Quelimane só com a sua bebé e desabafou com a minha mãe:
- Minha Amiga, obrigada pelo que fez por mim. Sei que o futuro pertence a Deus mas arrependo-me do que fiz no passado… Apaziguada com o Senhor da vida, agora recolho o ouro dos dias, vejo o lado bom e brilhante de tudo quanto me disse… Adoro a minha filha e é a maior riqueza que tenho na vida… Havia sinais… sinais de que o rio voltara ao seu leito e seguia calmamente para a sua foz…
Entretanto… acontecia o 25 de Abril! Alvoroço nas vidas, mudanças, cansaços… um reboliço total para todos!
A senhora veio com a filha despedir-se. Iam as duas para a África do Sul… Da Metrópole, os filhos já formados não lhes estenderam a mão…
- Se não fosse a minha filha, o que seria de mim agora?
A minha mãe fitou-a olhos nos olhos e disse-lhe:
-Deus sabe o que faz!
Já em Portugal, soubemos que a senhora tinha problemas de saúde e que aquela filha era o seu anjo da guarda. Uma brilhante profissional, optou por não se casar, para dar total apoio à sua mãe.
A vida tem mistérios que não sabemos explicar… diz-se que os grãos, como as bolotas, morrem para neles rebentar uma outra vida…