sábado, 30 de abril de 2011

Mãe

Há uma mulher que tem um pouco de Deus pela imensidade do seu amor e muito de anjo pela incansável solicitude dos seus cuidados.
Há uma mulher que, sendo jovem, tem o reflexo de uma anciã e, na velhice, trabalha com o vigor da juventude.
Uma mulher que, sendo ignorante, descobre os segredos da vida com mais acerto que um sábio e que, sendo instruída, se acomoda à simplicidade dos meninos.
Uma mulher que, sendo pobre, se satisfaz com a felicidade dos que ama e, sendo rica, daria com gosto o seu tesouro para não sofrer no seu coração a ferida da ingratidão.
Uma mulher que sendo vigorosa, estremece com o vagido de uma criança e sendo débil se reveste, às vezes, com a bravura de um leão.


Uma mulher que, enquanto viva, não a sabemos estimar porque a seu lado todas as dores se esquecem, mas que, depois da sua morte daríamos tudo o que somos e tudo o que temos para vê-la de novo um só instante, para receber dela um só abraço, para escutar uma só expressão dos seus lábios.
Dessa mulher não me exijam o seu nome se não querem que molhe com lágrimas o vosso álbum porque eu a vi passar no meu caminho.
Quando cresçam os vossos filhos lede-lhes esta página, e eles, cobrindo de beijos a vossa fronte, vos dirão que um humilde viajante, em paga da sumptuosa hospedagem recebida, deixou aqui para vós e para eles, um esboço do retrato de sua mãe.

- Monsenhor Lara, Bispo do Chile


segunda-feira, 25 de abril de 2011

Zambeziana


Olho para ti e revejo
nesses teus olhos tão lindos
que brilham de nostalgia
aquela acácia florida
que quando criança traquina
trepava com alegria
para poder avistar
meu reino de fantasia


Nessa pele de tez morena,
que a ti te fica tão bem,
descubra um nariz engraçado
e... sorrio, ao recordar
um coelho espavorido
que avança e trava indeciso...
ao avistar na planície
o clarão de uma queimada


E os teus cabelos revoltos
de indiferença sobranceira
são folhas de uma palmeira
que contemplo num sorriso
após momentânea tristeza
de uma saudade incontida
ao recordar a beleza
de uma terra não esquecida



Teu ventre mexe ondulado
dançando a marrabenta
e deixa-me enfeitiçado;
Lembra o mar que não se aguenta
quando se estende na areia
em hora de maré cheia.
Brilham-me os olhos, sem fala
e... sonho c’o aquele lugar
a que chamaram Zalala.


Como convites fatais
à procura de milando
tuas coxas sensuais
ocultas vão-se espraiando
debaixo da capulana.
És mais bela que as demais.
És Namuli, minha serra,
beleza da minha terra
meu rio dos Bons Sinais.


E esse sorriso tão puro
que cativa e apaixona
nesse rosto de mulher,
ia jurar de certeza,
que era água cristalina
a correr solta e brilhante
do Licungo, deslumbrante
numa terra inda menina
Que diziam... Portuguesa!


- Joaquim Filipe Patrício


sábado, 23 de abril de 2011

O Senhor "Kanimambo"


A notícia chegou-me assim como uma bátega que me molhou toda: “Morreu hoje (dia 22) João Maria Tudela”. A custo sustive uma vontade enorme de chorar. Num turbilhão passaram por mim as músicas que ele celebrizou: KANIMAMBO (Obrigado) que o lançou na rádio, no mundo discográfico e em espectáculos por todo o mundo. MOÇAMBIQUE, que passará a ter mais uma carga emotiva e tantas, tantas outras canções na sua voz belíssima. Com um português bem pronunciado, um pouco anasalado que o tornava diferente de todos os outros.
O álbum das minhas recordações vai perdendo as suas páginas, num vazio que dói!
Recordo os serões do Rádio Clube de Moçambique onde ele actuou tantas vezes, fazendo chegar a sua voz aos pontos mais longínquos de Moçambique.
A sua música embalou a minha alma antiga, com os segredos de criança e os sobressaltos da juventude. Alegria, coisas nobres, encheram-me por completo.
Era um homem elegantemente educado, de famílias brasonadas mas de uma simplicidade cativante. A simpatia representava precisamente a sua distinção!
Calou-se a voz que o fadista João Braga chamou o “nosso Sinatra português”.
Há pessoas que, quando partem, levam um pouco das nossas vidas. Os moçambicanos, hoje, ficaram mais pobres.
João Maria Tudela partiu numa sexta-feira santa, num dia de céu cinzento e triste!
E os meus pensamentos também se obscureceram! É perigosa esta tristeza! Cantemos; há belas canções que ele interpretou e que estão na nossa memória. É a melhor maneira de homenagear este cantor moçambicano que nos deu tanto.
A noite veio expulsar este dia baço e triste. O coração recolheu-se mais cedo e o CD de João Maria Tudela, onde estão reunidas as suas melhores canções, roda, roda… sem parar e passo por Inhambane e digo “Hambanine” (adeus), pela ”Beira”, a cidade do Xiveve, volto a “Lourenço Marques” a terra que tinha “Xicuembo” (feitiço), vejo os “Magaíça” e a preta que vende “Macala” e todos dizem “Obrigado Moçambique” e na hora de te deixar “Moçambique” fica mais forte e todos trazem na sua bagagem a música que passou a ser um hino para os “retornados” do Índico: “Moçambique, que palavra tão bonita/ fique lá onde ela fique/ Diga lá quem a disser…/ Moçambique é alegre como a chita/ tem a graça e tem o tique/ de um sorriso de mulher.”
Mas hoje, JOÃO MARIA, todos os moçambicanos cantam, os que vieram e os que lá ficaram, com a voz embargada, tenho a certeza: KANIMAMBO (OBRIGADO) com todo o nosso coração!


sábado, 16 de abril de 2011

Luz na Janela


Foi num dia de Verão que lhe falei pela primeira vez. Eu tinha entrado com muita pressa na sua loja pobre para que ele consertasse os meus sapatos. Cumprimentou-me logo com muita efusão: “Se não me engano a senhora é nova aqui pelo bairro, não é?”
Efectivamente, confirmei, havia pouco mais de uma semana que nos havíamos mudado para a nossa moradia, na esquina daquele quarteirão.
“Este bairro é muito bom”- tornou ele… - ”a senhora vai-se dar muito bem por aqui.”
Aí, sentei-me, em palmilhas de meias, a observá-lo, enquanto ele, abanando a cabeça e suspirando, arrancava as capas gastas dos meus saltos e examinava o couro que os revestia; o couro estava gasto em virtude do muito tempo que eu esperara para os mandar consertar. Comecei a sentir-me um tanto impaciente porque tinha um encontro com hora marcada.
Olhou para mim por cima dos seus óculos, com branda censura e disse:
- Isto não demora nada minha senhora. Eu quero fazer um bom trabalho. - Calou-se um instante e prosseguiu - saiba a senhora que eu tenho uma tradição a defender.
Uma tradição, pensei eu, mas que tradição poderia haver naquela lojeca triste, sem nada que a distinguisse de tantas outras oficinas de sapateiros espalhados pela cidade?
Deve ter adivinhado, pois sorriu para continuar:
- Sim, minha senhora, eu herdei uma tradição! Meu pai e meu avô eram sapateiros e dos melhores. O meu pai disse-me sempre: “Meu filho, honra-te a ti mesmo fazendo o melhor que puderes. Faz sempre isso e serás duplamente compensado em ventura e prosperidade.”
Ao entregar-me os sapatos consertados, comentou:
- Isto agora vai durar muito mais. Este couro é do bom.
Saí a correr, fazia-se tarde para o meu encontro, mas ia possuída de um sentimento grato e reconfortante. De regresso a casa, nessa tarde, tornei a passar em frente da loja de mestre sapateiro. Surpreendeu-me com um cordial aceno de mão e assim se iniciou entre nós uma amizade.
De princípio eu entrava ali somente quando necessitava dos seus arranjos, mas, com o tempo, habituei-me a ir lá uma vez por outra, para uma prosazinha.
O sapateiro era um homem alto, apesar de curvado por muitos anos de labor. Tinha o cabelo grisalho e ralo e a cara sulcada de vincos profundos.
O que dele me lembro mais eram os seus olhos castanhos, animados de bondade e humor.
Era com certeza o homem mais feliz que conheci. Muitas vezes, de pé atrás da vitrina da loja, martelando na forma de ferro, cantava com emoção.
Os seus vizinhos chamavam-lhe “Luz na Janela”.


Parti para o estrangeiro por algumas semanas. Pouco depois de regressar desci a rua ansiosa por ver a surpresa com que ele havia de me saudar. Não vi “Luz na Janela”… A porta estava fechada. Aproximei-me e li um cartão: “Os consertos estão na lavandaria ao lado”.
Entrei na lavandaria para perguntar qual a razão daquele escrito… Sim, o mestre morreu!
Sofrera uma congestão cerebral ali mesmo por detrás da vitrina onde trabalhava.
Saí dali com o coração pesado de tristeza. Senti saudades… Ele deixara-me uma herança – um pouquinho de sabedoria que jamais esquecerei.
“Quem herdou uma tradição orgulhosa, deve preservá-la e quem não a herdou, deve iniciar a sua própria tradição”.


sábado, 9 de abril de 2011

África


(História contada pelo meu pai)


Passou-se no interior da Zambézia, num local quente e húmido mas lindo como África é sempre, onde quer que estejamos.
Era a estação das chuvas, a mais quente, os algodoeiros floridos ofereciam-se como beleza ímpar aos olhos dos homens: parecia que tinha nevado sobre as grandes plantações de algodão.
Os homens poderosos, que beneficiavam com a recolha desta riqueza, chamavam-lhe “ouro branco”. Um amigo do meu pai trabalhou numa dessas plantações como capataz e responsável por centenas de trabalhadores, e, possivelmente, terá sido ele o contador desta história.
O ar estava pesado e o calor era sufocante. Avizinhava-se uma daquelas tempestades africanas, fortes e rápidas, para depois deixar brilhar um céu azul e a terra florir ainda mais generosa. Era preciso, pois, apressar o trabalho de centenas de homens e mulheres indígenas. Era barata a mão-de-obra e isso significava um aumento considerável de lucros dos tais grandes senhores.
Os cipaios, uma espécie de autoridade africana, que os administradores destacavam para as plantações, espicaçavam os indígenas a dar maior rendimento. Era urgente colher o algodão todo antes que a chuva viesse e causasse elevados prejuízos ao dono. Tinham começado a tarefa muito cedo, ainda o sol não tinha nascido por detrás dos grandes morros.
Trabalhavam há horas sem parar e o astro-rei estava no pino, causticando as peles negras e secas. Mesmo para quem lá nasceu e estava habituado à dureza do calor, era difícil trabalhar naquele sufoco.


De repente, ouviu-se um grito e a chibata cruzou o céu, quase tão escuro como a cor das peles que se debruçavam para o algodão branco de neve.
- Vamos, trabalha – gritava o cipaio enfurecido. E a pobre mulher, velha pelos anos, pelo trabalho e pelo sofrimento, dizia baixinho:
-Não posso mais, não posso mais.
Fez-se silêncio e todos pararam de trabalhar. O ar ficou mais carregado, ouvia-se perfeitamente o arfar dos corpos suados e cansados, em contraste com o alegre chilrear dos pássaros. De novo a chibata se ergueu no ar e foi então que um homem grande e negro como carvão se aproximou e pediu:
- Se quiseres castigar, fá-lo em mim. Aqui tens as minhas costas para bater. O cipaio ficou surpreendido e irritado levantou a chibata dizendo:
- Não quero aqui mandriões, é preciso colher o algodão todo, antes que caia a chuva.
E o preto grande, ajoelhando-se, quase beijando a terra que cheirava já a chuva que havia de cair, implorou mais uma vez:
-Não lhe batas. Farei o meu trabalho e o dela. Bate em mim, aqui tens o meu corpo, mas a ela não, que é minha mãe.
Instantaneamente o chicote ficou suspenso, e, no olhar da autoridade, percebeu-se uma sombra de carinho e compreensão, porque os monstros também têm uma mãe.
Deixou que o filho levantasse a pobre mulher, lhe enxugasse o rosto e lhe desse um pouco de água.
Foi das histórias que meu pai me contou, a que mais me emocionou e, nesse instante, veio-me á memória o poema de António Gedeão “Lágrima de Preta” e concluí que os sentimentos mais nobres que um homem tem dentro de si são sempre iguais independentemente da cor amarela, preta ou branca porque o coração, esse, é universal e tal como a experiência do poeta, é formado por dois aurículos e dois ventrículos.

domingo, 3 de abril de 2011

O Meu Aniversário


Não tenho anos… tenho VIDA! Cumpriu-se mais uma etapa do meu caminho.


É costume fazer-se balanço no final de cada ano civil. Eu faço-o no dia do meu aniversário. Tempo de exames para mim. Se é verdade que não posso prolongar a vida por um só minuto, é também verdade que posso torná-la maior e mais bonita. Gosto de rir e tenho a coragem de rir, de ser feliz, apesar de tantas sombras que passaram e passam na minha vida!
Onde estão os olhos grandes, as bochechas cheias, os braços tenros e os sorrisos limpos da minha meninice? Onde está a minha lista de sonhos, infindável, e do lento amadurecer das minhas ilusões?

Aniversario

A vida tem mais imaginação do que os nossos sonhos. Desmedidos? Talvez! São sempre maiores do que a razão consente e sempre menores do que as mãos são capazes.

Esta contabilidade dos dias é difícil de se fazer. Avancei? Recuei? As minhas dificuldades não alteram a natureza das coisas. De uma coisa tenho a certeza: fui e sou feliz!


Pois é, hoje, dia três de Abril, faço anos! Aliás, não tenho anos… tenho VIDA!


ESSA, SOU EU

Aquela menina
De olhos sonhadores,
Morena, franzina,
Brincando sozinha
Tão sossegadinha
Beijando a boneca
Colhendo uma flor
Adorando o sol
Sofrendo com ardor do luto do céu,
Sou EU!



Aquela menina
-sapato tão belo
Apertando o pé-
A trança caída,
Comprida
Que ali vai
Escorrega e cai
Na marcha da escola,
Sem pasta
Sem livro ou sacola
Aquela que leva
Na alma a revolta
Porque vai na forma
Parece um soldado
Fardado
E que quer ser livre
Sonhar e sofrer
Sem voz de comando
Gritando atitudes
Razões e motivos
A que adora os entes
Que sabem pensar
Querer e amar
Só porque estão vivos,
Sou EU!


A que fantasia
Um mundo feliz
Vai e caminha
Entre a multidão
Procurando um amigo
Que lhe estenda a mão,
Só porque não sabe
Acertar o passo,
Porque erra o compasso
Dessa área enfadonha
Da adulação,
Sou EU!


Aquela menina
De branco vestida
Tecido como neve
De alma a cantar
Com alguém a esperar
E entra na Igreja
E ouve tocar
Uma marcha igual
A que já ouviu
E também sentiu,
Essa que se ajoelha
O corpo dobrado
Ao lado do amado
Visão de seda
Que sabe a ilusão
E responde SIM
Sentindo o desejo
Do seu coração,
Sou EU!


Sou eu essa mãe
Com todo o carinho
Erguendo ao luar
Um filho a chorar
E grita
Soluça,
Por tanto amor
E felicidade,
Sou EU!


Essa que ficou
De braços vazios
A alma sangrando,
Os olhos chorando
Sem sonho a sonhar,
Sem prece a rezar
Vencida
Esmagada
Sem vida
Sem nada
Farrapo, destroço
Levado pela onda
Revolta do mar
A que Deus roubou
O amor que lhe deu,
Sou EU!


Essa que da dor
Da vida deu seu rumo
Com meta e um norte
Fez estrada de luz
Por onde caminha
Mais firme, mais forte
E das cinzas frias
Labareda alta
Que ilumina o dia
Com toda a sua alma
Gritou : alegria!
Sou EU!


A que sente o sangue
Mais quente nos versos,
A que crê na vida
Mas desdenha a morte,
Volta a ser moça
Amada e irmã
A que sente a alma
Mais nobre e sã
A que está contente
Com a sorte pequenina
Que Deus lhe deu,
Sou EU! Sou EU!!

- Adaptação do poema de Alice Ogando



Um lindo postal enviado pela amiga brasileira Estela, do blog "Guardados e Achados". Um beijinho de muita amizade.



Obrigada pelo carinho...




Aniversário