quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Apresentação do meu livro "Feitiços"

Queridos Amigos,

Há cerca de 3 meses interrompi a publicação deste conto romanceado que tenho vindo a partilhar convosco. Esta longa ausência justifica-se pelo pouco tempo que tenho tido disponível por ter estado a ultimar os últimos pormenores para a publicação do meu livro Feitiços que será apresentado no próximo dia 29 de Novembro, sábado, no Auditório Municipal de Vila Nova de Gaia, uma ocasião que muito gostaria de partilhar convosco.

A menina que sonhava escrever um livro cumpriu o seu sonho… A vós amigos, peço-vos que o recolham nas vossas mãos com muito carinho porque ali, nesse livro, está o que tenho de mais precioso: a minha vida!!

Conto com a vossa presença.
 
Um forte abraço a todos.


terça-feira, 12 de agosto de 2014

A Ponta da Meada



(Continuação de Ana)


A vida dá tantas voltas, tecendo um manto com uma infinidade de fios entrelaçados, que acaba por não se saber onde está a ponta que deu início a tudo tal é o emaranhado e a confusão de trajetos mal combinados. Alguns, é evidente… E é neste tear da vida de muitas e variadas cores que, às vezes, mesmo sem intenção, se vai buscar a pontinha possivelmente mal acabada que ficou de fora do belo tecido cruzado e recruzado por tantos acontecimentos.

Era o que Margarida, uma das amigas próximas da Ana, pensava quando na paragem esperava pelo autocarro. Aquela chuva miudinha e irritante punha-a nervosa. Em pleno verão apanhara toda a gente desprevenida.
O dia começara quente e cheio de sol e ninguém esperava pela surpresa. Se não tivesse pressa até adoraria caminhar um pouco, sentindo as gotinhas pequeninas escorrendo-lhe pelo rosto. No entanto, a Maria Inês, que completava este terceto de amizade, estava à sua espera na pastelaria do costume e ela detestava chegar atrasada.
- E o autocarro que nunca mais chega! - E parecia um pião andando de um lado para outro, pondo a cabeça à roda de todos quantos ali estavam.
Esticou-se o mais que pôde para ver a rua até ao fundo:
- Lá vem ele! - Porque será que os autocarros chegam sempre atrasados quando temos hora marcada para alguma coisa? Nunca entenderia!
Quando chegou à pastelaria Maria Inês já ia no segundo pastel de nata.
- Ainda bem que chegaste amiga pois iria responsabilizar-te pelos quilitos a mais que em breve danificariam a minha silhueta…
- Maria Inês, já não és uma miúda, tens de saber controlar-te. Porque é que em vez de toda essa doçaria não pediste uma torrada? - Ralhou Margarida.
- Queridinha, achas que o meu estômago se contentaria com uma simples torrada quando estou preste a conhecer algo bombástico?
- Fala baixo! Este é um assunto que não quero que chegue aos ouvidos de ninguém.
E Margarida corria a pastelaria com olhar atento à procura de algum rosto conhecido.
- Vá, desembucha, antes que eu mande vir outro pastel de nata.
- Não sejas criança. O assunto é grave e confidencial.

Maria Inês sentou-se melhor na cadeira, aplicou todos os seus sentidos e preparou-se para ouvir a grande revelação.
- Sabes, – disse Margarida baixando a voz e olhando para todos os lados - o Ricardo é casado e tem dois filhos.
- O quêêeeee?!? - Quase gritou Maria Inês. - Não pode ser!
- É o que ouves. Também eu fiquei sem pinta de sangue quando o soube.
- E a tua fonte de informação é segura, de confiança? - Insistia Maria Inês.
- Como diz a minha avó, a mentira tem perna curta. E depois há fios da meada que ficam um pouco à mostra e daí…
- Mas qual meada? Não percebo nada…
- Esquece. O que eu quero dizer é que o meu amigo outro amigo tem e assim por diante. Aquilo que se julga bem guardado passa de um para outro quase sem querer. Basta haver um fio condutor que tudo coordena e vai dando sentido à trama, montando o puzzle.
- Afinal quem descobriu tudo? - Maria Inês roía as unhas.
- A mulher do António é grande amiga da Tonicha que namora com o Victor. E a Tonicha terá comentado com o namorado…
- E é claro que este pôs tudo na praça. Ainda falam das mulheres… Havia de ser comigo.
- Acalma-te, não foi nada assim. O Victor, em conversa com a mãe, contou-lhe que a namorada andava triste porque a grande amiga dela estava em vias de se divorciar. Tinham duas crianças pequenas, uma delas ainda de meses e ela não estava disposta a conceder o divórcio, pelo menos a bem…
- E…. - Maria Inês quase desaparecia na cadeira.

- E a mãe do Victor perguntou por perguntar, penso eu, qual era o nome do sujeito com a cabeça a prémio… E ele lembrou-lhe que já o teria visto, pelo menos uma vez, à saída do teatro na companhia da Ana Gonçalves e Sousa. Que se chamava Ricardo e era professor na faculdade. Acho que a mãe nem queria acreditar e obrigou o filho a confirmar duas ou três vezes se era mesmo da Ana Gonçalves e Sousa, filha da sua amiga Marta, de quem ele estava a falar. O filho confirmou, mas perante a insistência da mãe, que queria saber se eles já se namoravam, o pobre do Victor já só queria encerrar o assunto. Pediu à mãe que não dissesse nada à Marta, que aparentemente não sabe de nada disto, lembrando que o Ricardo até pode ter boas intenções e esteja realmente à espera do divórcio para assumir o relacionamento com a Ana. A mãe ainda lhe perguntou se afinal havia relacionamento entre os dois ou não mas o Victor, certamente já arrependido de ter falado no assunto, apenas rematou diplomaticamente dizendo que, pelo menos oficialmente, não havia nada de concreto.
- Pois, pois… Estes homens abrem a boca e depois não sabem como fechá-la, é o que é! - Maria Inês estava espantada. - Mas afinal como soubeste de tudo isto, não és assim tão próxima do Victor para que ele te viesse contar isto tudo… penso eu claro…
- Claro que não, mas encontrei casualmente a Tonicha, de quem, como sabes, também sou amiga, e ela contou-me todo o episódio, desde o triste caso da sua amiga, a mulher do Ricardo até à atribulada conversa em que o namorado meteu os pés pelas mãos com a mãe. Como deves imaginar fiquei logo ali furiosa. Fui para casa e pus-me a fazer contas da vida da Ana. Repara, vê se não é assim? A Ana começou a namorar o Ricardo dois anos depois da morte do pai. O senhor faleceu há seis anos, portanto ela namora com ele há cerca de quatro anos… Como é que a filha mais nova do Ricardo só tem uns meses de idade? Estás a ver a jogada?

- Pode ser adotada! – Replicou Maria Inês já aflita.
- Estás mas é a levar uma bofetada e ver se os teus neurónios trabalham. - Afirmou Margarida exasperada.
- E então agora o que fazemos?
Margarida falava como se estivesse a raciocinar em voz alta, só para si. "O Ricardo pede o divórcio à mulher que não lho concede. Entretanto, ele quer regularizar a situação com a Ana e diz-lhe que é divorciado mas oculta-lhe que é pai, naquela altura de uma só criança. O segundo filho vem na tentativa não de uma reconciliação, mas sim de um apaziguamento, espécie de paz podre, para pedir à mulher, em troca, o divórcio amigável…"
- Mas ele está a enganar a Ana miseravelmente. Alguém tem de por cobro a esta situação. Não achas que temos de ir falar com ela? Somos amigas há tantos anos, temos que lhe contar a verdade! - Maria Inês era impulsiva mas de muito bom coração.
- Será que tenho de te amarrar à cadeira? Situações destas têm de ser elegantemente desmascaradas, a sangue frio e na hora exata. - Margarida endurecera as suas feições e mudou o ritmo da conversa. - Vou pensar muito bem em tudo e o que for feito será em grande, tentando magoar o menos possível a Ana.
- Se estivesse cá o Daniel, seria uma ótima ajuda. – Lembrou Maria Inês.
- Claro, é isso mesmo! - Exclamou Margarida. - Em último caso entramos em contacto com ele. Agora este recado é para ti, o que aqui ouviste fica só entre nós e mais ninguém! Estás a perceber? – A voz de Margarida tomava um tom ameaçador.

- Claro Margarida, podes contar comigo. Mas, para atenuar este choque, posso mandar vir mais um pastel de nata?
Margarida olhou-a de alto a baixo.
- Podes, mas se depois não couberes na porta do autocarro o problema é teu.

(Continua)

terça-feira, 8 de julho de 2014

Ana


(Continuação de Sempre o Amor)


Ana olhava a foto do pai com ternura e interrogação. Parecia-lhe que aqueles olhos verdes, que herdara, lhe faziam perguntas. Suspirou.
Seria que o pai, que sempre a tinha compreendido, gostaria do Ricardo? Ainda nada dissera à família. Encerrara-se no seu casulo inquieta com medo das apreciações mas também respeitando a memória do pai, sempre venerado em casa apesar de já terem decorrido seis anos sobre a sua morte. Sofrera muito com a partida do seu papi. Afinal, era a sua menina bonita, a preferida para fúria de Alex que, como caçula, entendia que tudo lhe era devido.
Claro que o pai adorava o filho mas este era mais novo cinco anos que a irmã e havia temas que ainda não podia conversar com ele.
Quando Ana devorava livros atrás de livros, o pai dizia-lhe:
- São uma droga, não é? Não conseguimos livrar-nos deles. - E ria feliz porque o seu gosto literário coincidia com o da filha.
Às vezes andavam à disputa sobre uma obra que ambos queriam ler ao mesmo tempo. Outras vezes cada um escolhia o seu livro, depois trocavam e, finalmente, havia o debate num serão de família em que Marta também entrava; fazia igualmente parte do grupo “dos ratos de biblioteca” como afirmava o Alex que assistia a estes serões um pouco enfastiado sem compreender como é que uma pessoa pode gostar tanto de ler… “Que seca!” Por vezes intervinha como árbitro e as suas opiniões não eram assim tão descabidas… Estaria para nascer outro “rato”?




Ana sorriu pousando a foto sobre a secretária. Sentou-se na cadeira de executiva, como dizia o irmão, e chamou a si todas as recordações.
Lembrava-se de Alex, já meio adormecido naquela peleja intelectual, levantar-se e dizer solenemente: 
- Vamos ao concreto meninos!
Todos riam porque já sabiam o que era o concreto de Alex. Meia hora depois de se ter retirado de cena aparecia na sala de avental posto com um grande tabuleiro onde havia de tudo… Era o fim do teatro ou o princípio… Com gestos teatrais virava-se para a mãe e perguntava:
- Madame o que deseja? Está tudo a seu gosto?”
E passava-lhe pequenas tapas barradas com uma mistela que ele reinventava constantemente mas todos concordavam ser muito boa. De seguida surgia um prato de scones aquecidos no micro ondas. “João Ratão” era perito em encontrar restos comestíveis.
- E a senhorinha, que vai tomar? Devo recordar-lhe o cuidado com a sua linha… Mais um pouco de bolo e adeus cinturinha de vespa…
Ana fingia que se zangava com ele.
- Senhor arquiteto, – Virava-se agora para o pai. – sei das suas preferências e aqui está um uísque bem geladinho e um café quentinho acabado de sair… Nunca entenderei estas oposições…
E inclinando-se fazia uma graciosa vénia. O pai achava-lhe imensa graça e rematava sempre:
- Ainda hás-de ir para o teatro.
A mãe puxava a si aquele filho querido e enchia-o de beijos. Como eram felizes… Havia amor verdadeiro e muita ternura.


Seria assim com Ricardo quando constituíssem família? De novo aquela pontada de angústia a apertar-lhe o coração. Ricardo vinha de uma outra relação, de um casamento falhado… Às vezes era irónico e demasiado amargo para o seu gosto, ela que tinha uma alma alegre e transparente.
Como iria a sua família, tradicional, católica praticante, de rigorosos princípios, aceitar um namoro assim? Iria rebentar uma guerra? E o pior é que não tinha a certeza, bem no fundo da sua alma, se estava no caminho certo. Evidentemente que gostava do Ricardo. Era um homem persuasivo, mais velho do que ela quase dez anos, e que fora seu professor na Faculdade.
Chegou de mansinho à sua vida, no momento em que estava toda partida pela dor e com a vida feita num nó. Aceitara a sua companhia porque sentia falta de uma presença masculina que substituísse a do pai, como se isso fosse possível.
- A Ana tem de reagir a esse desgosto. É uma mulher inteligente e sabe que o seu pai depositava grandes esperanças em si. Não gostaria, por certo, de a ver derrotada. - Dizia-lhe Ricardo quase todos os dias. - Quando não puder ir às aulas faculto-lhe apontamentos para a ajudar.
Sem saber como, dois anos depois, estava de namoro com Ricardo.
As colegas comentavam e chegaram a dizer-lhe que ele não era homem para ela.
- Não sei porquê! É um homem educado, com posição, charmoso… Não sei porque não me agradaria.
- Só isso não basta. – Retorquiam as amigas. - É preciso carácter e isto não aconteceria se o teu pai fosse vivo. – Fora a frase que mais lhe ficara no ouvido dita por Daniel.




Mas havia que lhe dar um desconto, Daniel gostava dela desde o secundário. Era habitual lá em casa, filho de amigos dos pais, que se visitavam amiudadas vezes.
O pai chegou a dizer-lhe:
- Ana, ainda te hei-de ver casada com o Daniel e olha que o rapaz tem toda a minha bênção.
- Ó pai, somos só bons amigos e colegas. Já te esqueceste que fomos criados quase juntos? Vejo no Daniel apenas um irmão.
- Os bons e duradouros casamentos assentam muitas vezes nas boas amizades.
De certeza que Daniel intervira um pouco por despeito. Contudo, Ana continuava a ter apreço por ele e sentia-se bem na sua companhia.
O telefone tocou tirando-a de toda abstração e conjeturas…
- Está, Ana? Sou eu o Daniel!
- Sim, eu sei, ainda conheço a tua voz. Estava a pensar em ti…
- Sim? Bem ou mal? - Perguntou ansioso.
- Sabes que nunca penso mal de ti. Tu és para mim muito querido, como um irmão.
Do outro lado houve um silêncio e um suspiro prolongado…
- É pena, mas isso agora também não interessa. Telefono-te para me despedir, parto hoje para Itália.
- E ias-te embora e não me dizias nada? Que é feito do amigo que sabia tudo sobre mim e eu sobre ele? - Perguntou Ana com alguma tristeza.
- Sabes, crescemos, temos de tomar opções na vida, muitas vezes diferentes daquelas que gostaríamos e os caminhos começam a ser paralelos, senão opostos. Mas é evidente que a nossa amizade será sempre a nossa Amizade, com letra maiúscula.
- Sim e ias-te embora sem quase me dizer nada. Fui apanhada de surpresa… Mas porquê essa decisão?
- Compreende, o convite que tive não o recebi há muito tempo. Tive ainda de amadurecer a ideia, estudar os prós e os contras e ecco, lá vou até Itália. Vou trabalhar num conceituado gabinete de arquitetos, o vencimento e regalias são ótimos…
- E as mulheres bonitas… – Atalhou Ana um pouco enciumada.
- Por enquanto esse capítulo está encerrado. Não sou homem para enganar uma mulher gostando eu de outra.
Ana acusou a direta e mudou de conversa.
- Então não vais lá a casa despedir-te da família?
- Já o fiz pelo telefone. Falei com a tua mãe que ficou espantada com esta decisão e com muita pena de não me ver mais por lá a pedir à Maria que fizesse scones para o lanche… O Alex… bem, esse insultou-me e perguntou-me com quem iria agora jogar ténis. – Riu-se, um pouco nervoso. - Sei que todos vocês gostam de mim, isso não duvido.
- Era o que faltava Daniel. Diz-me a que horas parte o teu avião. Vou ao aeroporto dar-te um abraço.
- Não, não. É melhor assim, acredita. Até para os dois. Só te peço uma coisa: pensa muito a sério no que vais fazer em relação ao Ricardo. Se precisares de mim, seja para o que for, é só ligares para o meu telemóvel e eu ponho-me em Portugal no primeiro avião.
Ana sentiu lágrimas nos olhos e no coração. Com voz sumida, respondeu-lhe:
- Eu sei Daniel, eu sei. Faz boa viagem e que Deus te ajude em tudo porque tu mereces. Um beijo.
E desligou apressadamente para não aumentar aquela onda de angústia que começava a inundá-la.



Não, não conseguiria trabalhar mais nesse dia. Deixou pedidos e informações sobre a sua mesa de trabalho e disse à secretária que se ia embora porque não se estava a sentir bem.
O vento na rua refrescou-a um pouco. Iria de novo ter outra perda na vida? Começava a ser demais…
Chegou a casa agitada.
- A minha mãe? – Perguntou à Maria que a olhou espantada com tanta brusquidão.
- A senhora está no jardim. – Respondeu-lhe o mais calmamente que pode.
Correu como quando era criança até ao refúgio da mãe, à procura de paz e de carinho.
- Oh, mãe, o Daniel vai-se embora! – E chorou no seu ombro.
- Eu sei minha querida… e dói? - Perguntou a mãe observando-lhe o rosto cheio de lágrimas.
Ana abanou a cabeça afirmativamente.
Marta, afagando os cabelos da filha, disse-lhe ao ouvido:
- Então pensa porque dói tanto….


(Continua)

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Sempre o Amor


(Continuação de Viver De Novo)


- Maria, está tudo pronto lá fora? - Perguntou Marta ao passar pela cozinha.
- Com certeza menina.
Seria sempre a menina em todo o lado. A vida é demasiado curta para não saborearmos todos os mimos que nos oferecem.
- Desculpa a demora Carlos, mas fui ver os meus filhos.
- Ainda estão em casa? - Perguntou Carlos lentamente.
- Não, isto é, a Ana, já sabes como ela é, saiu cedo; e o furacão do meu filho foi agora vestindo ainda o casaco pelas escadas abaixo… - E ria como uma criança.
- Tu adoras os teus filhos como adoraste o pai.
- Eu adoro o José Manuel. - Marta mudara o tom da sua voz.
- Mas Marta, o Zé Manuel já não está entre nós. Não podes passar a tua vida a viver do passado, de recordações…
- E se elas me fazem feliz? - Perguntou agastada.
- Pronto, não se fala mais no assunto. Realmente tinhas razão, torradas com manteiga e mel são deliciosas.
- Não te dizia? - E voltava a ser a Marta de sempre, simpática, acolhedora, quase alegre.




Carlos era um amigo de infância, talvez mais do que isso, pelo menos da parte dele. José Manuel às vezes irritava-se com tantas deferências para com a sua mulher.
- Porque é que o Carlos te oferece sempre rosas vermelhas no dia do teu aniversário?
- Talvez porque desde menina e moça foi sempre a minha flor preferida e ele sabe disso.
- Mas sabes qual o seu significado? Rosas vermelhas são sinal de paixão…
- Idiotices que alguém inventou. Trata-se apenas de um gesto de delicadeza. Se eu gostasse desde sempre de gladíolos roxos, os meus amigos, por deferência, oferecer-me-iam ramos deles nas datas especiais da minha vida.
Sem dúvida o marido sempre tivera ciúmes do Carlos e estes avivaram-se mais quando ele se separou da mulher.
- Claro, como é que este casamento iria dar certo se ele gostou sempre de outra mulher?
Sabia onde ele queria chegar mas nunca alimentou esta discussão porque, no fundo, achava que era um reparo injusto.
É certo que, nos verdes anos, Carlos lhe fizera um cerrado “rendez-vous”, sem resposta da sua parte. Gostava dele como amigo e assim iria ser o resto da sua vida. Quando Carlos se casou com Maria do Carmo estava, pelo menos, deslumbrado. E Marta acreditava que fora um casamento para sempre no que respeitava a Carlos. Quando um dia ele lhe pedira opinião sobre a sua noiva, ficou calada. Preferiu o silêncio do que ter de lhe dizer que Maria do Carmo não era mulher para ele.
- Adivinho, não gostas dela. - Afirmou com a sua habitual sinceridade.
- Não, não se trata disso. Julgo é que vocês são o oposto um do outro. Tu gostas do ambiente familiar e ela de reinar em sociedade.
- Oh, o amor ultrapassa tudo. Não é o que costumas afirmar?
- Sim mas quando ele é recíproco.


Tal como vaticinara o marido o casamento de Carlos não durou mais de um ano. Felizmente não havia crianças para a infelicidade ser maior. A partir daí Carlos tornara-se um solteirão empedernido com ligações fugazes que não deixavam marcas de nenhuma espécie.
- São apenas cometas. Vão e vêm sem deixar rastos. - Afirmava brincalhão.
- Não devias falar assim, e muito menos fazê-lo. O casamento e o amor são assuntos sérios.
- E eu levei o meu casamento a sério e vê o resultado…
- Ficaste fechado na tua dor, na tua revolta, e passaste a olhar as mulheres apenas como objectos de prazer. Que fizeste às tuas asas de poeta?
- Queimei-as nas desilusões. – Respondeu amargamente.
- Arrumaste os teus virtuosos princípios e ganhaste medo.
- Talvez… não tive a sorte do José Manuel.
- A sorte constrói-se e, por vezes, sabe a sangue. Um casamento é um combate constante, não um contra o outro, mas uma luta diária contra o tédio, a monotonia e o egoísmo. É preciso suar as estopinhas, dia a dia, reprimindo caprichos e impaciências.
- É assim com o teu marido?
- É assim com o José Manuel e é assim com todos os casais que querem fazer do seu casamento uma vida de amor.
- Não achas demasiado pueril essa tua definição de casamento? - Perguntou entre sarcástico e enlevado.
- Achas a cruz pueril, meu querido? Ela pesa e não são nada agradáveis os seus benefícios…
- Ainda assim…
- Ainda assim, esse sofrimento devolverá alegrias, ternura e a certeza de sonhar sempre. O casamento é o poema da minha vida.
- Já não sei se é virtude ou masoquismo…
- Se não mudas não conhecerás as delícias de um verdadeiro amor….




- Estás tão concentrada… Em que pensas? - E a voz de Carlos punha-a de novo na realidade.
- Em nada de especial. - Afirmava distante.
- Mas há sombras nos teus olhos…
- Talvez… e haverá sempre.
- Nada de tristezas! – Voltava a ser o Carlos companheiro e amigo. Vim buscar-te porque quero a tua opinião sobre um apartamento que vou comprar.
- Um apartamento? Que bom! E onde? - Perguntava entusiasmada.
- Junto ao mar como tu gostas. - Disse numa voz melosa.
Marta não ligou ao tom de voz adocicado de Carlos e respondeu um pouco friamente:
- Vou buscar a minha carteira e só vou contigo se me deixares decorar o teu novo apartamento.
- É evidente. Não ousava pedir-te mas, no fundo, era o que eu desejava ouvir. Conheço o teu bom gosto e tu sabes aquilo que eu mais aprecio.
- Sim, já sei: funcionalidade com algumas pitadas de romantismo…
E riram os dois como duas crianças.



(Continua)


terça-feira, 13 de maio de 2014

Viver de Novo



Da janela do seu quarto, Marta aspirava com deleite os primeiros perfumes da manhã que vinham do seu jardim tão florido naquela primavera. Amadurecia, como os frutos, separando tudo de uma forma nítida, para ligar depois de uma forma mais íntima.
Marta gostava de vestir a sua alma na intimidade do seu jardim… que lhe dizia tanto. Os amigos interrogavam-na sobre a razão de necessitar tanto daquele espaço. Ela sorria e afirmava que a intimidade com alguém ou alguma coisa é amassada todos os dias como o bom pão. Dizia:
- Tenho pássaros dentro de mim que nunca aprenderam a voar e tento apontar-lhes caminhos…
Não. Eles nunca a entenderiam…
Marta correu completamente as cortinas e abriu as janelas do seu quarto de par em par. Adorava as manhãs em que o sol se escondia por de trás de um fino nevoeiro e coava uma luz amarela que transformava tudo numa poalha de oiro. Lembravam-lhe outras manhãs distantes na sua longínqua terra natal.


O verão chegaria em breve e, por isso, os odores eram mais fartos e sensuais. Não tão sensuais como os que guardava na sua memória, mas, ainda assim, tão sentimentais e perfumados que a faziam esquecer horas mais dolorosas cheias de ecos distantes e de emoções nunca esquecidas. Nas suas mãos, a cada manhã, pesava a alegria destes momentos e procurava estar inteira no mundo.
Era uma mulher de Fé, Fé também esta que os amigos não entendiam mas que admiravam quase como uma certa inveja.
Os pássaros entoavam uma sinfonia magistral e Marta sentia-se apaziguada com a vida e com as saudades. Era como começar o dia com uma “Acção de Graças”. E havia tanto para agradecer, apesar de tudo. Celebrava a vida no lavar do rosto daquela manhã.
As amigas confidenciavam-lhe:
- Gostava de ser como tu…
- Em quê? Não tenho nada de especial…
- Tens Fé, constróis sonhos sobre sonhos, mesmo quando eles se desmoronam… Para ti, amanhã, tudo vai ser melhor... Como consegues isso num tempo em que ninguém já segura as rédeas? Vejo-te sempre de pé, maior que todas as tuas lutas, acreditando na promessa de outros dias felizes.
- Sabes que não é bem assim… Mas sim, tenho Fé porque tive a felicidade de ter tido uma infância e juventude rodeada de amor. Pais, familiares e amigos atentos ao meu crescer. Nasci num país fabuloso de sol onde a vida cheia de simplicidade nos dava tempo para desenvolver o espiritual. Arquivava na minha memória todo o bem que ouvia e via e a minha alma foi-se enchendo como um vaso: pouco a pouco! A Fé não aparece de um dia para outro… É uma longa construção que dura anos, ou antes toda a vida, e que tem de ser cuidada diariamente.
- É preciso ter a tua paciência…
- Não! Apenas pautar a vida pelo que se acredita e dar-lhe um sentido.
- Tens uma alma fantasista que te faz ver sempre horizontes largos…
- Nasci neles, física e sentimentalmente. Não há vida mais triste do que ter uma mentalidade mesquinha e tacanhez de coração.
- Talvez tenhas razão… Aqui viviam-se outros tempos e possivelmente não tivemos tempo, nem oportunidade, de crescermos por dentro, como costumas dizer.
- Mas ainda estás a tempo de o fazer…
- Agora? Pensava que havia um tempo para crescermos…
- Fisicamente é claro! Noutra dimensão há sempre novas sementeiras nas nossas vidas e condições de colheitas também…
Marta sorriu ao recordar esta conversa. Gostaria que os seus amigos entendessem que a vida é tão diferente daquilo que eles pensavam. 


Inclinando-se no parapeito da janela vislumbrou ao fundo, no jardim, uma grande mancha vermelha… Rosas, as rosas vermelhas que adorava. Tinham florido nessa noite. Vestiu depressa o roupão azul de verão e correu feliz ao seu encontro. Não podia prolongar a vida nem por um minuto apenas mas podia torna-la maior e mais bonita. Marta aspirou devagar o perfume das rosas como se bebesse pequenos tragos de um vinho saboroso. Era assim que ela amava a vida: sentir-se rainha por alguns momentos e pensar que morrer era o que menos importava quando se viveu intensamente.
- Está-se bem aqui no teu jardim. Entendo agora porque gostas tanto dele…
Voltou-se rápida.
- Oh Carlos, estavas aí…
- A Maria deixou-me entrar e disse-me que estavas no lugar do costume.
- Já tomaste o pequeno -almoço?
- Não, mas não te preocupes…


- Não há que ver! A Maria faz umas torradas deliciosas com manteiga e mel. Enquanto me visto ajuda-a a colocar a mesa pequena do pátio aqui, bem no meio do jardim. Repara na moldura que nos cerca: gladíolos, rosas, jarros e as lendárias hortenses…
- É e será um pequeno-almoço cheio de poesia e…
- Eu não me demoro… - Atalhou Marta rapidamente sem deixar que Carlos concluísse o seu pensamento.
Quando saiu do seu quarto passou pelos quartos dos filhos. Ana, uma executiva responsável e um pouco o seu retrato, já tinha saído para o trabalho. Marta olhou com carinho aquele espaço tão feminino, onde cada objecto fora escolhido com cuidado e disposto com elegância e arte.
Em cima do cadeirão, junto à janela, estava um livro com um marcador dentro. As delícias de Ana: os livros, tais como as suas. Há ligações que não se consegue explicar.
Pegou no retrato que estava na mesinha de cabeceira e olhou com amor um Zé Manuel saudável e sorridente. Ana gostara sempre daquela imagem do pai. É contra nós que corre o tempo mas Marta acreditava que só se morre quando mortos na memória daqueles que nos amaram. Ana era a menina bonita do pai. Bebia-lhe as palavras e os ensinamentos mas ele partira sem saber que a filha tinha concretizado os seus sonhos profissionais e era uma jovem encantadora.

Marta fechou devagarinho a porta do quarto, deixando atrás de si um espaço mergulhado numa doce penumbra cor-de-rosa onde pairava uma fragrância fresca de mulher.
Marta pensava numa frase que lera há muito tempo, não sabia mesmo onde: ”Nós somos todos feitos de amor e para amar.” Nesse momento esbarrou com o filho que saía do quarto como um furacão.
- Mãe, depressa, um beijo, já estou atrasado! – E como um meteorito correu pelas escadas deixando atrás de si um rasto de confusão e desordem.
- Ó Alex, e o pequeno- almoço?
- Tomo na faculdade. Não tenho tempo a perder.
E todos os dias repetia-se esta cena. Marta sorriu compreensiva…
Tentou abrir a porta do quarto do filho e foi com dificuldade que o conseguiu. Um campo de batalha não estaria pior… Montanhas de roupa suja; a cama, desfeita, já não tinha lençóis; e, por todo o lado, havia loiça suja. Um copo com resto de sumo aqui, uma chávena ainda com chá noutro lugar e junto ao computador um prato com sobras de comida.
Não havia dúvida que Alexandre fazia incursões nocturnas à cozinha e transportava para o quarto tudo o que encontrasse no frigorífico. Era o desespero da velha Maria.
Marta deliciava-se com este filho tão parecido com o Zé Manuel. E não era só fisicamente. Até na voz. Há poucos dias ele falara-lhe do quarto e ela, na sala, um pouco alheada, pensou: “É o Zé Manuel que chegou” Que disparate! Quando arrumaria o coração e as saudades?


(continua)




quarta-feira, 23 de abril de 2014

Estrela


Sempre que olho fixamente o céu à noite, parece-me ver uma estrela a mudar de sítio.
Deve ser, provavelmente, porque olho tempo de mais. E os meus olhos que buscam, quase na maioria da vezes, uma estrela cadente, acabam por ver o que não existe.
Os olhos tecem os sonhos da alma. São o rei do coração.


Desampara-me saber que existem tantas estrelas. Que qualquer uma delas poderia ser a minha luz, o meu eixo giratório. E sobre ele rodaria, incandescente e única, a minha órbita. Em adoração mútua. Porque é tão bela uma estrela como um planeta que em seu torno gira. Um ilumina, outro obscurece, um está parado, o outro baila em redor. Mas ambos têm o mesmo mistério, toda a dimensão que os une.
E o meu negro céu, a abóbada celeste que me embala como um regaço doce de mãe está repleta de pontos pequenos a brilhar.
Mas tens que ser tu, logo tu, aquela que se incendiou... Aquela estrela tão nova e tão poderosa que me abraça com uma força gravitacional incontrolável. Essa estrela que me atrai e assusta. Que me aconchega e queima. Que me ilumina e ofusca.
Somos demasiado diferentes para nos entendermos. Somos demasiado iguais para sermos diferentes. Somos demasiado poderosos para nos unirmos na Terra.


E sabemos que lá longe, muito longe, existe uma galáxia. Um mundo novo que ainda ninguém descobriu. Quando alguém conseguir lá chegar, quando alguém descobrir a ciência de ver com os olhos, aquilo que não existe, perceberá que, nesse espaço, a dimensão é imensa e especial. Tentarão falar... Mas só versos ecoarão por entre o nada. Tentarão compor melodias... Mas só os acordes da nossa música rasgarão o silêncio. Tentarão ver... Mas aí... Aí, só vão ver uma luz inebriante que os afasta.
Vinda de uma estrela enorme e bela, de fogo de Arte, que levava nos braços um planeta suave e meigo, de gelo e Magia.
Vinda de uma estrela que, afinal, tinha mudado de sítio.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Seriedade


Luisa passava uma época atormentada com a contradança de empregadas a entrarem e a saírem. Não percebia o que se passava… Elas vinham todas com referências de pessoas ilustres. No entanto, depois, o seu comportamento deixava muito a desejar. Eram as suas porcelanas e cristais que apareciam partidos, a conta da mercearia com produtos que ela não pedira… Enfim, um inferno.


Faziam de tudo para serem despedidas ao fim de poucos dias mas exigiam o ordenado por inteiro!
O marido dizia-lhe muita vez:
- Tens um coração mole e elas conhecem a tua fraqueza.
- Eu estou é cansada deste corrupio e não sei como os antigos patrões passam referências tão enganadoras…
- E sabes se são eles quem as passa? Devias fazer o que aconselha a Leonor, ligar para esses números de telefone que elas apresentam nesses cartões pomposos e indagar sobre a sua veracidade. Mas não, admites logo o pessoal sem saber onde elas penduram as botas.
- Espoliam-me como ladrões de estrada e não tenho quem me sirva… - Lamentava-se Luisa.
Nem de propósito, no dia seguinte Leonor telefonou-lhe para saber como paravam as modas.
- Não tenho ninguém que me sirva, Leonor! Estive a pensar e vou limitar o pessoal a uma só. Quero uma empregada que faça o serviço todo de casa. Meto uma mulher-a-dias para as limpezas e mando a roupa à lavandaria…
- Então talvez tenha algo que te sirva. No jornal de hoje vem um anúncio de uma senhora viúva que pretende um lugar como o que tu ofereces.
Luisa não quis saber de mais nada e telefonou de imediato para a senhora “de respeito”. Quando chegou ao seu contacto perguntou-lhe se estava disponível para se apresentar ao serviço o mais breve possível.
A mulher, de nome Rita, apresentou-se para uma entrevista dois dias depois. Luisa gostou do seu aspeto: alta, magra, já com alguns cabelos grisalhos, um ar simpático mas sério; como se a seriedade tivesse cara.


Luisa tinha ressonâncias de alegria dentro de si e pensava que podia ir agora mais descansada para o seu escritório.
Ao jantar o marido ficou surpreendido por múltiplas razões: por já haver uma empregada em casa como se alguém tivesse estalado os dedos, pelo assado primoroso apresentado com classe, contrariando ar bastante humilde, quase rústico, de quem o servia.

- Espero que desta vez tenhas primeiro colhido informações. - Dizia-lhe o marido.
- Ah, não foi preciso! Mal lhe abri a porta vi logo que era uma pérola.
- Só se for falsa…
- Não digas isso. Tivemos uma conversa que me elucidou bastante sobre o seu carácter.
É viúva, o marido morreu no Brasil. Durante algum tempo viveu com o filho único que era funcionário de um banco e que faleceu num acidente…
- Mulher, ela matou toda gente para que não haja ninguém que possa confirmar a sua verdade. - Concluía o marido insistindo em manter a dúvida.
- Estás a ser injusto. Ela até tem umas boas economias lá na terra mas, para não ser pesada a ninguém, resolveu trabalhar. É de Fornos e facilmente poderemos averiguar se falou verdade.
- E deu referências?
 - Bem, dar não deu, mas disse-me que podia perguntar aos Menanos, ao Dr. Bettencourt e até me falou no nome de alguns ministros. Todos a conhecem mais à sua família…
- Que já morreu…
- É boa pessoa e até acrescentou que se o ministro (o último onde ela trabalhou) soubesse que ela estava a servir, mandava-a para a terra com uma boa mesada.
- Qual ministro? Só se for o da Saúde para a internar… Luisa, tu acreditas nisso tudo?
- Olha, pelo menos cozinha como viste…

Luisa sacudiu os pensamentos negativos que o marido lhe sugeria e acalmou-se pensando que, no dia seguinte, deixaria a sua casa bem entregue.
À noite, quando chegaram os dois a casa, um perfume de guisado espalhava-se no ar como um convite irrefutável das qualidades culinárias da dona Rita.
- Luisa, esta mulher foi toda a vida cozinheira. - Afirmava com convicção o marido.
Depois do jantar Luisa foi para cozinha conversar e tentar descobrir um pouco mais sobre a empregada. Entabularam uma conversa muito curiosa. Dona Rita entusiasmada com o interesse da patroa “esticava-se”…
- A senhora conhece Fornos, a minha terra?
- Sim conheço, já lá estive há alguns anos.
- Então devia conhecer o Barão de Fornos que era meu tio.
- Era seu tio?
- Era sim senhora mas, quando ele morreu eu estava no Brasil e por isso fiquei sem nada.
- Então tem viajado muito…
- Bastante… Quando o meu marido era vivo corremos a Europa quase toda até fomos numa viagem de recreio à Suíça no “Niassa” porque o comandante era nosso amigo.
- No “Niassa”? Tem a certeza?
Dona Rita atrapalhou-se e pensou que tinha ido longe de mais.
- Foi, foi. Até a minha irmã mais velha foi connosco… – Disse, agora com menos convicção.
- E a sua irmã vive em Fornos?

- Não, não… Ficou lá pela Suíça e nunca mais deu notícias.
Acabou de arrumar a cozinha e disse quase desabridamente:
- Vou deitar-me, minha senhora.
Luisa quando se deitou contou ao marido a história que ouvira da cozinheira.
- Com que então no “Niassa” e vá lá, desta vez não matou a irmã… Luisa, tira informações sobre esta mulher, ela é uma aldrabona.
-Coitada, é só para não parecer uma criada de servir.
Mas no dia seguinte a porteira veio ter com ela e perguntou-lhe:
- A senhora conhece bem a sua empregada?
- Bem, de certo modo…
- É que ela faz pela janela uns sinais com os dedos e depois recebe visitas na sua ausência.
Luisa quando entrou em casa chamou a dona Rita:
- Já lhe disse que não quero visitas na minha ausência.
- Ah, elas até eram para a senhora… - Disse manhosa.


À noite na cozinha continuava a desfiar os seus altos conhecimentos à procura de um estatuto de nível.
Luisa começava a duvidar e ainda mais a dúvida se consolidou quando a porteira veio ter com ela e confidenciou:
- Hoje apareceu uma mulher com um saco de oleado, andou na rua a mirar as suas janelas e só entrou quando viu os tais sinais.
Luisa desabafou com Leonor.
- Eu se fosse ti mandava-a já, mas mesmo já para donde veio. E que isto te sirva de lição.
O marido logo concordou com Leonor.

Finalmente convencida, Luisa chamou a dona Rita, pagou-lhe o ordenado por inteiro, e despediu-a.
A Empregada aceitou logo, correndo pelas escadas abaixo e levando a sua parca bagagem.
No fim-de-semana seguinte Luisa resolveu fazer uma limpeza a fundo à casa e deu conta da “limpeza” que dona Rita fizera nos dias que lá trabalhara.
Telefonou aos ilustres empregadores mas ninguém conhecia nenhuma Rita.

Procurou de imediato o jornal onde aparecera o anúncio e telefonou para o número através do qual tinha contactado a ex-empregada. Qual não foi a sua surpresa ao saber que o número pertencia a uma tabacaria e de onde a informaram que apenas tinham consentido receber respostas a um anúncio de emprego para ajudar uma senhora viúva, de “muito respeito”…

quinta-feira, 27 de março de 2014

Pergunta-me



Pergunta-me
Se ainda és o meu fogo
Se acendes ainda
O minuto de cinza
Se despertas
A ave magoada
Que se queda
Na árvore do meu sangue

Pergunta-me
Se o vento não traz nada
Se o vento tudo arrasta
Se na quietude do lago
Repousaram a fúria
E o tropel de mil cavalos



Pergunta-me
Se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
Junto das pontes enevoadas
E se eras tu
Quem eu via
Na infinita dispersão do meu ser
Se eras tu
Que reunias pedaços do meu poema
Reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
Pergunta-me qualquer coisa
Uma tolice
Um mistério indecifrável
Simplesmente
Para que eu saiba
Que queres ainda saber
Para que mesmo sem te responder
Saibas o que te quero dizer

- Mia Couto in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"

terça-feira, 11 de março de 2014

Encontro de Átomos


Inês guardou na sua pasta os exames médicos que a doutora Cecília lhe entregara.
- Obrigada por tudo doutora.
- Tudo? Mas eu não fiz nada porque a Inês não permite. É uma pessoa invulgarmente dinamizada eu diria até, desassossegada. Sofre da doença do “mais”…
- Não brinque doutora Cecília… O jornal precisa de mim para esta grande reportagem e já há diversas conferências marcadas com pessoas de todo o mundo que estão envolvidas neste trabalho social. Vão comigo mais dois elementos do jornal e a viagem é para daqui a dois dias.
- E se em vez de um tumor benigno fosse maligno, Inês? Não teria a capacidade de parar, ouvir o que os médicos lhe dizem, escutar a própria vida?
- Não sei… Com certeza que na Índia também há hospitais bons que me possam ajudar se a situação se alterar…
- Penso que sim mas, não é a mesma coisa. Aqui está em casa em todos os aspetos e o apoio da família e amigos é muito importante.
- Espero regressar a tempo de resolver a situação. Depois de ter cumprido a minha obrigação profissional…
- Diga antes, o seu sonho…

Inês sorriu e o seu olhar já estava longe dali e de si própria. Meteu-se no carro pronta a ir fazer as malas para evitar aquele desconforto de já não se sentir em lado nenhum…
Os pais já não se surpreendiam com estas viagens que Inês fazia a cada passo em serviço. Mas agora para a Índia… tão longe, o coração ficava apertado, sem dúvida.
Inês sossegava-os:
- O tempo passa depressa e prometo que todos os dias falo convosco.
Inês gostava da sua profissão que, em cada ano, lhe oferecia uma aventura feita de rostos, de histórias, de muitas palavras a correr como um rio, compêndios, apontamentos e fotocópias.
Por diversas vezes já fora premiada por reportagens que fizera quer para o jornal, quer para a televisão.
Já no avião, Inês não largava o seu computador. Os colegas riam-se dela:
- Aproveita para dormir umas horinhas, a viagem é muito longa.
- Não consigo dormir no avião. Aproveitem vocês, estou já a trabalhar na minha reportagem.
Contudo, Inês passou algumas horas pelo sono…

Túmulo do imperador mughal Humayun, construído em 1570, serviu de inspiração para o Taj Mahal. New Delhi, Índia

Quando chegaram a Nova Deli, capital da Índia, a cidade foi uma surpresa agradável para os três, bem como o luxuoso hotel onde ficaram hospedados.
Avisados que depois do jantar haveria a conferência de apresentação, apressaram-se a tomar um duche para espantar cansaços e vestirem-se adequadamente.
Ao jantar, numa mesa de dez pessoas tornada em Nações Unidas: ouvia-se falar em espanhol, italiano, inglês, francês e, claro, em português.
A seu lado, sentou-se um italiano, também ele jornalista, que desportivamente se apresentou:
- Ciao, me chiamo Giovanni, de Riomaggiore… Scusi, o meu portuguese non è muito buono. È una língua molto difficile…
Perante aquela algaraviada proferida de forma tão desajeitada e simpática, Inês nem exitou e disse sorridente em bom italiano:
- Não há problema, eu falo italiano!
O alívio do seu interlocutor não se fez esperar.
- Meu Deus, mas isso são ótimas notícias! – E a partir daí a conversa entre os dois seguiu na língua mãe do jornalista italiano.
É claro que, entre todos os que sentavam naquela mesa, surgiram as inevitáveis dificuldades de comunicação, mas nada que um sorriso e umas palmadinhas nas costas não resolvessem.
Todos tinham a consciência que era um privilégio estarem ali, convidados expressamente para um mês de trabalho em várias províncias da Índia.

No dia seguinte, vários autocarros levaram jornalistas e conferencistas a fazer uma breve visita à capital da Índia. Giovanni, que já conhecia o país, sentado ao lado de Inês, era o seu guia pessoal. Diante dos olhos de Inês surgia o limite entre a realidade a bater-se vencedora com a ficção e os pés de barro dos quais ia dando conta em vários pontos deste circuito, preparado para encantar. Mas a tradição pesa e oferece imagens, por vezes, nada agradáveis.
Giovanni dizia-lhe:
- Quem vem à Índia, nunca mais regressa igual. E é verdade!
- Foi o que te aconteceu?
- Sim, adorei o povo, as suas tradições tão marcantes, a sua história e cultura religiosa tão pouco conhecidas dos ocidentais. A Índia ou se gosta e ama-se de vez ou se rejeita e tem-se a vontade de pegar o primeiro avião para voltar para casa.

Inês sentia-se dentro de um filme, daqueles filmes indianos que ela sempre detestara. Pensava que a sua vontade talvez fosse a segunda hipótese. No entanto, nunca fora de desistir e entendia perfeitamente que o bem e o mal convivem amiudadas vezes paredes meias, assim como o amor e ódio, o lar e a selva.
Giovanni falou-lhe de Mahattma Gandhi, esse homem extraordinário que amou o seu povo precisamente porque reconhecia que eram presas fáceis para a morte que os rondava sempre. Pessoas fustigadas sem piedade por toda a espécie de pobreza, aceitando essa vida miserável como um destino. 

Rio Ganges em Varabasi, Uttar Pradesh, Índia
- Tenho um projeto, talvez como Gandhi… Quero ajudar este povo na medida das minhas possibilidades. Em Uttar Pradesh colaboro num empreendimento que está a erguer uma aldeia sociocomunitária auto-suficiente, que, aos poucos, está a transformara vida de um pequeno canto daquela província tão pobre…
- Uttar Pradesh? Mas é aí que vamos fazer a nossa reportagem! - Inês ficara curiosa com o projeto de que Giovanni lhe falara. A ideia de poder testemunhá-lo em primeira mão deixou-a radiante.
“Nenhum homem é uma ilha; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra”. Uma citação muito bonita mas que, às vezes, não tem significado.

Universidade La Martiniere, Lucknow, Índia (c) Ahmad Faiz Mustafa
Inês estava cada vez mais ansiosa para ver a obra de que tanto ouviu falar naqueles dias. As horas voavam em antecipação do momento de chegada à província de Uttar Pradesh. A viagem passou por um voo entra Nova Deli e Lucknow, a cidade dourada da Índia e capital da província. Depois seguiu-se uma longa viagem por estrada, para norte, em veículos ao serviço do empreendimento com que Giovanni colaborava. A localidade mais próxima era Nighasan, não muito longe da fronteira com o Nepal.
O aldeamento, esta palavra fazia todo o sentido, fora construído de raiz. Inês e os seus colegas ficaram espantados com aquela “pequena cidade”. De facto, a única palavra que liberta toda a espécie de prisão, é o amor. E ali notava-se, para além de muito trabalho, o amor e a dedicação.

Giovanni e os imensos amigos convidados a oferecerem um ano ou dois de trabalho comunitário em Uttar Pradesh, tinham sido fantásticos, quase operando um milagre.
Não faltava um pequeno hospital, bem apetrechado, um infantário, um lar de idosos, duas escolas para além de habitações sociais destinadas às famílias pobres, que naquela zona eram quase todas...
Inês desdobrava-se em visitas e entrevistas à população local, quando necessário com a tradução de Giovanni já razoavelmente fluente em hindi.
- Estou a adorar fazer esta reportagem e de ter a oportunidade de dar a conhecer ao mundo a obra que está aqui a ser feita.
- Não precisamos de aplausos, apenas de muita ajuda e amor. - Riu-se Giovanni.

Os dias foram correndo céleres e Inês constatava que já amava aquela obra e gostava de estar ali. Percebia também, na sua sinceridade interior, que havia outros laços que iam crescendo igualmente. E no silêncio dos corações um sentimento muito seguro foi cimentando-se na reciprocidade. Há coisas que não se podem esconder, tal é a sua intensidade.
Os outros sorriam e compreendiam.
Um dia Giovanni sentiu-se mal. Ficou muito pálido, parecia a imagem da morte. Chamaram o médico que habitualmente o assistia.
- É tempo de voltares outra vez a Itália. Há tratamentos que não podem parar.
A situação desnudava-se perante Inês confrontada com a perceção inegável de que algo de grave se passava.
A reportagem estava pronta e os colegas partiriam dentro de dias. Mas os planos de Inês eram outros, estava determinada em seguir com Giovanni para Itália. Todo o seu material tinha sido enviado para a sua redação e as imagens recolhidas seguiam com o cameraman que havia acompanhado o grupo para serem editadas em Portugal.


- Não quero que alteres os teus planos por minha causa. - Murmurava-lhe Giovanni.
- O meu dever profissional está cumprido e agora há outro que se impõe. Se tens de lutar contra alguma coisa eu serei tua aliada! - Afirmou Inês decidida.
Na viagem de avião até Roma houve espaço e tempo para abrirem os seus corações.
- Padeço de leucemia há algum tempo mas o desânimo nunca me afetou. Continuei com a mesma determinação no trabalho do aldeamento a que eu chamo de “Mio Amore”.
Inês brincou:
- Ah, pensava que era eu o teu amor. Riram-se os dois.
Após um momento partilhado, a expressão de Inês tornou-se séria e afastando docemente os braços confessou num murmúrio:
- Tenho dificuldade em encontrar as palavras certas sem te causar mais preocupações. Na véspera de embarcar para a Índia, a minha médica entregou-me os resultados de exames que fizera e o vaticínio era cancro da mama, embora o tumor fosse benigno. Comprometi-me com ela, no meu regresso a Portugal, a fazer o devido tratamento.
Giovanni e Inês abraçaram-se num gesto onde para além do amor, havia cumplicidade, intimidade e partilha.
- Havemos de vencer! – Disse Giovanni.
Ao chegarem a Roma, Giovanni foi internado no seu hospital para fazer vários exames. Antes ainda confiou Inês aos cuidados dos pais transmitindo-lhes o carinho que tinha por ela que um pai e uma mãe tão bem sabem reconhecer. Nascia um vínculo que unia aqueles seres marcados pela doença e pelas preocupações mas também por um sonho grandioso de fazer muita gente feliz.
O avançar dos dias parecia trazer mais calma a Giovanni e a Inês mais impaciência.
Inês passava todo o tempo possível com o seu amore no quarto de hospital onde continuava internado. Num desses dias, receberam a visita de uma médica que Giovanni apresentou de imediato.

Cupido e Psyche, por Antonio Canova (c. 1797) - Palazzo Marini, Milão.

- Minha querida, esta médica, uma grande amiga minha, é especialista na área do teu problema e gostava de te fazer um exame mais cuidado. Porquê esperar o teu regresso a Portugal? Já que estamos os dois aqui façamos uma revisão aos nossos casos.
Inês aceitou pensando que no último mês, a caminho do segundo, tinha tido uma vida sem repouso, numa vertigem constante de alta velocidade e fortes sensações.
Era preciso parar como dizia a doutora Cecília.
Nos dias seguintes os casos clínicos de Giovanni e Inês foram tema de conversa em vários núcleos hospitalares do país. Os médicos conferenciavam, discutiam opiniões com outros especialistas, e ofereciam possíveis soluções. O cancro de Giovanni e o tumor de Inês haviam regredido. No caso de Inês o tumor havia desaparecido por completo. No de Giovanni as melhorias eram inusitadas e inesperadas, aproximando a cura total.
Os clínicos questionavam qual seria a explicação. No caso de Inês era fácil entender o que se passara, afinal, por vezes, os tumores benignos regridem. Mas a leucemia de Giovanni era um cancro declarado! Não era muito clara a sua cura… Iria certamente ser motivo de vários estudos futuros.
Aos dois apaixonados pouco interessavam as explicações oferecidas pelos médicos, marcadas mais pelas dúvidas do que pelas certezas. Inês, abraçada a Giovanni, dizia-lhe:
- De tão longe vim aos teus braços abertos.
- Posso afirmar o mesmo, meu amor. Os médicos não entendem o que se passou mas eu sei: os nossos átomos deixaram de ter preocupações e uma espada sobre a sua existência. Ficaram cheios de projetos, de sonhos e, finalmente, de amor! Deixamos de pensar em nós para pensar nos outros. Deixou de haver espaço para a doença… Entre os nossos átomos houve uma secreta biogénese, essa coisa estranha a que se chama comunhão de corações.


- Foi apenas o Amor que nos salvou.