quarta-feira, 23 de abril de 2014

Estrela


Sempre que olho fixamente o céu à noite, parece-me ver uma estrela a mudar de sítio.
Deve ser, provavelmente, porque olho tempo de mais. E os meus olhos que buscam, quase na maioria da vezes, uma estrela cadente, acabam por ver o que não existe.
Os olhos tecem os sonhos da alma. São o rei do coração.


Desampara-me saber que existem tantas estrelas. Que qualquer uma delas poderia ser a minha luz, o meu eixo giratório. E sobre ele rodaria, incandescente e única, a minha órbita. Em adoração mútua. Porque é tão bela uma estrela como um planeta que em seu torno gira. Um ilumina, outro obscurece, um está parado, o outro baila em redor. Mas ambos têm o mesmo mistério, toda a dimensão que os une.
E o meu negro céu, a abóbada celeste que me embala como um regaço doce de mãe está repleta de pontos pequenos a brilhar.
Mas tens que ser tu, logo tu, aquela que se incendiou... Aquela estrela tão nova e tão poderosa que me abraça com uma força gravitacional incontrolável. Essa estrela que me atrai e assusta. Que me aconchega e queima. Que me ilumina e ofusca.
Somos demasiado diferentes para nos entendermos. Somos demasiado iguais para sermos diferentes. Somos demasiado poderosos para nos unirmos na Terra.


E sabemos que lá longe, muito longe, existe uma galáxia. Um mundo novo que ainda ninguém descobriu. Quando alguém conseguir lá chegar, quando alguém descobrir a ciência de ver com os olhos, aquilo que não existe, perceberá que, nesse espaço, a dimensão é imensa e especial. Tentarão falar... Mas só versos ecoarão por entre o nada. Tentarão compor melodias... Mas só os acordes da nossa música rasgarão o silêncio. Tentarão ver... Mas aí... Aí, só vão ver uma luz inebriante que os afasta.
Vinda de uma estrela enorme e bela, de fogo de Arte, que levava nos braços um planeta suave e meigo, de gelo e Magia.
Vinda de uma estrela que, afinal, tinha mudado de sítio.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Seriedade


Luisa passava uma época atormentada com a contradança de empregadas a entrarem e a saírem. Não percebia o que se passava… Elas vinham todas com referências de pessoas ilustres. No entanto, depois, o seu comportamento deixava muito a desejar. Eram as suas porcelanas e cristais que apareciam partidos, a conta da mercearia com produtos que ela não pedira… Enfim, um inferno.


Faziam de tudo para serem despedidas ao fim de poucos dias mas exigiam o ordenado por inteiro!
O marido dizia-lhe muita vez:
- Tens um coração mole e elas conhecem a tua fraqueza.
- Eu estou é cansada deste corrupio e não sei como os antigos patrões passam referências tão enganadoras…
- E sabes se são eles quem as passa? Devias fazer o que aconselha a Leonor, ligar para esses números de telefone que elas apresentam nesses cartões pomposos e indagar sobre a sua veracidade. Mas não, admites logo o pessoal sem saber onde elas penduram as botas.
- Espoliam-me como ladrões de estrada e não tenho quem me sirva… - Lamentava-se Luisa.
Nem de propósito, no dia seguinte Leonor telefonou-lhe para saber como paravam as modas.
- Não tenho ninguém que me sirva, Leonor! Estive a pensar e vou limitar o pessoal a uma só. Quero uma empregada que faça o serviço todo de casa. Meto uma mulher-a-dias para as limpezas e mando a roupa à lavandaria…
- Então talvez tenha algo que te sirva. No jornal de hoje vem um anúncio de uma senhora viúva que pretende um lugar como o que tu ofereces.
Luisa não quis saber de mais nada e telefonou de imediato para a senhora “de respeito”. Quando chegou ao seu contacto perguntou-lhe se estava disponível para se apresentar ao serviço o mais breve possível.
A mulher, de nome Rita, apresentou-se para uma entrevista dois dias depois. Luisa gostou do seu aspeto: alta, magra, já com alguns cabelos grisalhos, um ar simpático mas sério; como se a seriedade tivesse cara.


Luisa tinha ressonâncias de alegria dentro de si e pensava que podia ir agora mais descansada para o seu escritório.
Ao jantar o marido ficou surpreendido por múltiplas razões: por já haver uma empregada em casa como se alguém tivesse estalado os dedos, pelo assado primoroso apresentado com classe, contrariando ar bastante humilde, quase rústico, de quem o servia.

- Espero que desta vez tenhas primeiro colhido informações. - Dizia-lhe o marido.
- Ah, não foi preciso! Mal lhe abri a porta vi logo que era uma pérola.
- Só se for falsa…
- Não digas isso. Tivemos uma conversa que me elucidou bastante sobre o seu carácter.
É viúva, o marido morreu no Brasil. Durante algum tempo viveu com o filho único que era funcionário de um banco e que faleceu num acidente…
- Mulher, ela matou toda gente para que não haja ninguém que possa confirmar a sua verdade. - Concluía o marido insistindo em manter a dúvida.
- Estás a ser injusto. Ela até tem umas boas economias lá na terra mas, para não ser pesada a ninguém, resolveu trabalhar. É de Fornos e facilmente poderemos averiguar se falou verdade.
- E deu referências?
 - Bem, dar não deu, mas disse-me que podia perguntar aos Menanos, ao Dr. Bettencourt e até me falou no nome de alguns ministros. Todos a conhecem mais à sua família…
- Que já morreu…
- É boa pessoa e até acrescentou que se o ministro (o último onde ela trabalhou) soubesse que ela estava a servir, mandava-a para a terra com uma boa mesada.
- Qual ministro? Só se for o da Saúde para a internar… Luisa, tu acreditas nisso tudo?
- Olha, pelo menos cozinha como viste…

Luisa sacudiu os pensamentos negativos que o marido lhe sugeria e acalmou-se pensando que, no dia seguinte, deixaria a sua casa bem entregue.
À noite, quando chegaram os dois a casa, um perfume de guisado espalhava-se no ar como um convite irrefutável das qualidades culinárias da dona Rita.
- Luisa, esta mulher foi toda a vida cozinheira. - Afirmava com convicção o marido.
Depois do jantar Luisa foi para cozinha conversar e tentar descobrir um pouco mais sobre a empregada. Entabularam uma conversa muito curiosa. Dona Rita entusiasmada com o interesse da patroa “esticava-se”…
- A senhora conhece Fornos, a minha terra?
- Sim conheço, já lá estive há alguns anos.
- Então devia conhecer o Barão de Fornos que era meu tio.
- Era seu tio?
- Era sim senhora mas, quando ele morreu eu estava no Brasil e por isso fiquei sem nada.
- Então tem viajado muito…
- Bastante… Quando o meu marido era vivo corremos a Europa quase toda até fomos numa viagem de recreio à Suíça no “Niassa” porque o comandante era nosso amigo.
- No “Niassa”? Tem a certeza?
Dona Rita atrapalhou-se e pensou que tinha ido longe de mais.
- Foi, foi. Até a minha irmã mais velha foi connosco… – Disse, agora com menos convicção.
- E a sua irmã vive em Fornos?

- Não, não… Ficou lá pela Suíça e nunca mais deu notícias.
Acabou de arrumar a cozinha e disse quase desabridamente:
- Vou deitar-me, minha senhora.
Luisa quando se deitou contou ao marido a história que ouvira da cozinheira.
- Com que então no “Niassa” e vá lá, desta vez não matou a irmã… Luisa, tira informações sobre esta mulher, ela é uma aldrabona.
-Coitada, é só para não parecer uma criada de servir.
Mas no dia seguinte a porteira veio ter com ela e perguntou-lhe:
- A senhora conhece bem a sua empregada?
- Bem, de certo modo…
- É que ela faz pela janela uns sinais com os dedos e depois recebe visitas na sua ausência.
Luisa quando entrou em casa chamou a dona Rita:
- Já lhe disse que não quero visitas na minha ausência.
- Ah, elas até eram para a senhora… - Disse manhosa.


À noite na cozinha continuava a desfiar os seus altos conhecimentos à procura de um estatuto de nível.
Luisa começava a duvidar e ainda mais a dúvida se consolidou quando a porteira veio ter com ela e confidenciou:
- Hoje apareceu uma mulher com um saco de oleado, andou na rua a mirar as suas janelas e só entrou quando viu os tais sinais.
Luisa desabafou com Leonor.
- Eu se fosse ti mandava-a já, mas mesmo já para donde veio. E que isto te sirva de lição.
O marido logo concordou com Leonor.

Finalmente convencida, Luisa chamou a dona Rita, pagou-lhe o ordenado por inteiro, e despediu-a.
A Empregada aceitou logo, correndo pelas escadas abaixo e levando a sua parca bagagem.
No fim-de-semana seguinte Luisa resolveu fazer uma limpeza a fundo à casa e deu conta da “limpeza” que dona Rita fizera nos dias que lá trabalhara.
Telefonou aos ilustres empregadores mas ninguém conhecia nenhuma Rita.

Procurou de imediato o jornal onde aparecera o anúncio e telefonou para o número através do qual tinha contactado a ex-empregada. Qual não foi a sua surpresa ao saber que o número pertencia a uma tabacaria e de onde a informaram que apenas tinham consentido receber respostas a um anúncio de emprego para ajudar uma senhora viúva, de “muito respeito”…