quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Solange

Tem uns olhos enormes, azuis, não sei se espantados com o mundo se com a vida! Olha tudo atentamente e quando fecha as longas pestanas há salpicos do Índico onde a maresia ficou presa. Com o princípio do ano mudei-a de lugar. Estava na papeleira sentada por cima dos meus livros preferidos com um ar aborrecido com uma leve ruga na sua testa mimosa…
O cabelo loiro ligeiramente frisado, apanhado em cima da sua cabecita com um laço igual ao vestido, já não esvoaçava com o vento e o sol não adormecia naquele campo de trigo tão fofinho… Juraria que há pouco tempo lhe ouvi um soluço… Como é complexa a alma feminina!
Decidi sentá-la a meu lado! Compôs a roda do vestido de um xadrez miudinho preto e branco animado com uma espiguilha colorida, onde há um bolso com dois corações muito juntinhos… Suspirou feliz! O traço vermelho que é a sua boca abriu-se e esticou-se até às orelhas. Reparei que corou um pouco… Fiz de conta que não vi…
O ruído dos meus dedos no teclado do computador não lhe agrada… vai suportando!
De vez em quando olho-a! Ela tranquiliza-me, simplifica-me; explica-me a vida sem nada dizer porque já viu muito… Tem uma serenidade, uma nobreza que guarda no seu coraçãozito!
Não lhe conheço nenhum capricho para além de gostar dos banhos de sol e de velar o meu sono toda a noite… Creio que as nossas duas almas continuam sensíveis, muito vivas, para que o dia de hoje possa ser diferente do de ontem e do de amanhã. Todos estes cambiantes me enternecem…
Ah! Ainda não vos disse o seu nome: chama-se Solange!
Chegou a minha casa numa manhã perfumada de Abril, no dia do meu aniversário. Vinha num embrulho sofisticado, elegantemente acompanhada com um delicioso cartão que era quase o seu bilhete de identidade… Quando a vi lancei um grito de alegria e ela olhou-me cheia de ansiedade…
- Chama-se Solange, para substituir a que não tivemos…
Olhou-nos espantada e com aquele olhar apoderou-se de nós… para sempre.
Eu, que rio sempre, chorei como uma criança…
- Ah, Miúda, minha Miúda…
Suspiro… Fitou-me demoradamente com os seus olhos claros que hoje me pareceram húmidos…
Sim, eu sei muito bem o que eles me querem dizer: estou aqui para que continues a sonhar, a acreditar nas estrelas e no amor...


Por entre as cortinas do meu quarto vejo um céu muito azul num dia frio de Inverno… Parece uma porcelana… Há perfumes de rosas vindos não se sabe de onde… um perfume quente, delicioso que nos envolve às duas…
Trocámos o olhar e vi no seu rosto de boneca uma ternura tão grande, como se alguém a tivesse esquecido no bolso do seu vestido onde há dois corações juntinhos…
Foi a última prenda do Eugénio...