segunda-feira, 30 de julho de 2012

Ser Feliz


Todos almejam o mesmo - a felicidade - ainda que seja por caminhos diferentes.
Mas a palavra felicidade é muito subjectiva, tal como uma árvore com muitos ramos. Engloba sentimentos, emoções, espiritualidade e tudo aquilo que não é palpável e navega num mar subtil.

É dentro de nós que encontramos o princípio do caminho a seguir. Platão dizia: “Um homem que não arrisca nada pelas suas ideias, ou não tem ideias que valham, ou não vale como homem.” O conhecimento de nós mesmos, aumenta a capacidade de chegarmos mais longe.

Ao darmos sentido à nossa existência, às coisas que nos rodeiam, a solidão é ultrapassada.
Contudo, o homem está sempre só. Nasce, vive e morre sozinho, ainda que seja amado e tenha filhos, família e amigos. A solidão é a vida! Mas a solidão com significado, sentido e interpretativa da existência é já a condição para nos conhecermos e ao mundo inteiro.
E a felicidade começa aqui: sem sentido, existe o nada. Então, é preciso dar sentido às pessoas e às coisas que nos rodeiam. Claro que este sentido varia de pessoa para pessoa: pode ser deturpado, pouco esclarecido e egoísta e a felicidade fica deste modo, comprometida.
O que para mim tem sentido e me faz feliz, pode não ser para os outros. Lembro-me de um caso que aconteceu comigo. Um dia, ao passar por uma montra de uma loja de mobiliário, vi um candeeiro de pé alto que me dizia: leva-me! Foi um amor à primeira vista. Talvez não fosse tão moderno como os sofás que tinha na sala mas era lindo e eu gosto de misturar peças antigas com as mais actuais desde que casem bem e tenham lugar (sentido) na nossa casa!

À noite, admirava-o de todos os ângulos e pensava como seria confortável ler um bom livro debaixo daquele largo abajur de folha de papiro, com uma luz coada coroando um pé alto de talha trabalhada. Estava feliz com a compra e mais: fazia sentido na minha sala!
Dias depois, recebi a visita de uma dama, meio snob, de nascimento pobre mas que subira na sociedade (reparem que não digo, na vida…) através de filhos bem colocados, de posições cimeiras e de bolsas recheadas. Olhou o meu candeeiro e disse: “É bonito para esta casa, na dos meus filhos, não ficaria bem!”


Não me importei com esta opinião! Amava aquele candeeiro que iluminava horas tão felizes na minha sala. Já lá vão mais de vinte anos. Mudei de casa e o velho candeeiro continua a fazer sentido na minha vida.

É para isto que estamos na vida: para dar sentido aos outros, a nós e às coisas que nos rodeiam. Logo a seguir fica a nossa decisão (livre) de viver. É uma opção individual. Podemos viver a vida ou deixarmo-nos arrastar por ela. E para que possamos vivê-la totalmente temos de aceitar o jogo, isto é, ver o outro lado do caminho: a morte. Sem ela não existe vida.
Não é afastando esta ideia de finitude por medo que nos torna imortais… É esta a grande, a verdadeira e única realidade na vida que torna os homens todos iguais. E então? VIVEMOS!
Mas quem conta com a própria morte, vive intensamente todos os momentos, principalmente consigo mesmo. Toma na mão o seu próprio EU e a vida ganhando um grande poder e vivendo com intensidade absoluta.
Conheço pessoas com uma alegria que parece absoluta, imperiosa e, contudo, calma como a lentidão da terra. Não espalham gargalhadas ruidosas mas oferecem sorrisos que irradiam e parecem florir como o tojo ou o alecrim entre as fendas do granito.
Mantêm uma tranquilidade de espírito no meio das maiores tormentas e são capazes ainda de estender a mão a quem sobe a encosta. Estas pessoas entenderam que, entre a alegria e o sofrimento, não há fronteiras e, por isso, vivem intensamente todos os patamares da vida.
Martim Descalzo escreveu: “A alegria não mora numa habitação distante da dor, mas no andar de cima do sofrimento”.
Quem entender e aceitar esta realidade, está a meio do caminho para ser feliz!


segunda-feira, 16 de julho de 2012

Platero e Eu


Desde que São Francisco de Assis teve a encantadora ideia de armar um presépio que também eu, com imensa ternura, todos os anos pelo Natal, faço o mesmo… religiosamente!

Francisco, como ia dizendo, introduziu então na arte, o burrico. Coitado deste ser tão simpático e amoroso que, desde que foi anunciado (pelo menos em Portugal…) que estava em vias de extinção… toda a gente começou a recolhê-los, em quintas, em espaços apropriados. Ainda bem, gosto deles! 


Mas o franciscanismo adentrou o burrico também pela poesia e toda a criação – obra de Deus –  extasiou Francisco colocando-a igualmente neste belíssimo quadro do nascimento de Jesus A partir do século XVII os animais falavam, em fábulas, contos e muitas histórias. A condessa de Ségur com as memórias do famoso “Cadichon” foi pioneira nestas “fabulações”. E o cinema pegou, com muito êxito, nesta moda: cavalos, burros e cães que falavam.
Quando pela primeira vez abri o livro “Platero e eu” do escritor espanhol Juan Ramón Jimenez, esqueci-me de tudo que já tinha visto e lido sobre qualquer burrico famoso.
O estilo é a obra! Muito leve, transparente e límpida. 

Juan era andaluz, quase algarvio, pelo menos nosso vizinho. Há, de facto, um feitiço no sol e na lua do sul. Andaluzes e algarvios têm a sua maneira poética de dizer e de sentir. Juan Ramón escreveu e publicou cerca de trinta obras e deixou o original de cerca de 150 quando faleceu em 1959. Mas foi com “Platero e eu” que ele atingiu a fama mundial, tendo ganho o Prémio Nobel da Literatura em 1956.
Quando li este livro em 1962, era eu uma jovenzinha, e desde logo me seduziu. Ilustrado por outro artista espanhol Alvarez Ortega tem uma leveza e sedução que nos arrebata. Muitas edições surgiram depois, como é natural.
O livro é composto por 138 capítulos, independentes uns dos outros. O público podem ser crianças, jovens e pela sua dureza e amargura, para aqueles que, só com cabelos branco já, os podem ler e entender. A obra passa-se na bela Andaluzia, repleta da cor local impossível de esquecer. Só no final da leitura se entende toda a história porque a narrativa está dispersa por todos os capítulos.
O autor foi um jovem rico que cedo ficou órfão de mãe, a seguir de pai, tendo a família passado por revezes muito graves. Venderam tudo, incluindo o belo cavalo o “Almirante” mas ficou-lhe ainda um jerico – o Platero, com sugestões de prata devido à sua pelagem, que se tornou seu confidente e amigo incondicional. Com o rodar dos anos – os burros vivem muito já a Condessa de Ségur o afirmava nas suas memórias de Cadichon – o autor tem de novo uma família e vive feliz.

Mas, entretanto, Platero morre. O poeta sofre e na sua imensa dor e fantasia, imagina Platero num paraíso, entre flores. Um amigo oferece-lhe nessa ocasião um pequeno burrinho de barro que ele coloca sobre a sua mesa de trabalho e olhando-o revive e recria a personagem e as aventuras que ele viveu e sonhou com aquele burro famoso da sua juventude.
Respiguei quatro capítulos para que a vossa curiosidade desperte e nestas férias, possa ser este um dos livros a fazer-vos companhia.



AMIZADE
“Entendemo-nos bem. Eu deixo-o seguir como lhe apetece, e ele leva-me sempre aonde eu quero. Platero sabe que ao chegar ao Pinheiro da Coroa, me agrada chegar-me ao seu tronco e acariciá-lo e olhar o céu através da sua copa enorme e clara; sabe que me deleita a veredazinha que vai entre ciprestes até à Fonte Velha; que é para mim uma festa ver o rio desde a colina dos pinheiros, evocadora com o seu pequeno bosque, no alto, qual paisagem clássica. Como adormeço, fiado nele, o meu despertar abre-se sempre para um dos tais amáveis espectáculos. Eu trato o Platero como se fosse um filho. Se o caminho se torna pedregoso e um pouco pesado, desmonto para aliviá-lo. Beijo-o, jogo com ele, faço-o arreliar… Ele bem compreende que o amo e não me guarda rancor… É tão igual a mim, tão diferente dos demais, que chego a acreditar que sonha os meus próprios sonhos…”


A FLOR DO CAMINHO
“Que pura, Platero! E que bela esta flor do caminho! Passam a seu lado todos os tropéis – os touros, as cabras, os potros, os homens – e ela tão tenra e débil, fica erecta, cor de malva e fina, sozinha no seu valado, sem se contaminar com impureza alguma.
Cada dia, quando, ao começo da encosta, tomamos o atalho, tu bem a tens visto no seu posto verde. Já tem ao lado um passarinho que se levantou – porquê? – mal nos aproximamos; ou então ela está cheia, como ligeira taça, de água viva de alguma nuvem de verão; ou consente ainda o roubo de uma abelha ou o volúvel adorno duma mariposa.
Esta flor poucos dias viverá, Platero, embora a sua recordação possa ser eterna. O seu viver será como um dia da tua primavera, como uma primavera da minha vida… O que não daria eu no Outono, Platero, em troca desta flor divina, para que ela fosse diariamente o exemplo simples e sem fim da nossa?”



O POÇO
“O poço! Platero, que palavra tão profunda, tão verdenegra, tão fresca, tão sonora! Parece que é a palavra que perfura, movendo, a terra obscura, até chegar à água fria.
Olha: a figueira adorna e desbarata-lhe o parapeito.
Dentro, ao alcance da mão, abriu, entre os tijolos, prematura, uma flor azul de cheiro penetrante. Mais abaixo uma andorinha fez o ninho. Logo, atrás de um pórtico de sombra inerte, há um palácio de esmeralda, e um lago que, ao atirar-se-lhe uma pedra à sua quietação, se enfada e grunhe. E, por fim, o céu. (A noite entra e a lua inflama-se além, no fundo, adornada de volúveis estrelas. Silêncio! Pelos caminhos a vida foi-se para longe. Pelo poço a alma escapa-se para o fundo. Vê-se por ele, como que o outro lado do crepúsculo. E parece-lhe vai a sair pela boca o gigante da noite, dono de todos os segredos do mundo. O labirinto quieto e mágico, porque sombrio e fragrante, magnético salão encantado!)
Platero, se algum dia me deitar a este poço, não será para me matar creio, mas sim para agarrar mais depressa as estrelas. 
Platero zurra, sedento e anelante. Do poço, sai assustada e silenciosa uma andorinha.”


ALBA
“Nas lentas madrugadas de inverno, quando os galos no alerta vêem as primeiras rosas de alba e as saúdam galantes, Platero farto de dormir, zurra longamente. Como é doce o seu despertar distante, na luz celeste que entra pelas frestas da alcova! Eu, desejoso também do dia, penso no sol, desde a minha cama fofa.
E penso o que teria sido do pobre Platero se, em vez de cair nas minhas mãos de poeta tivesse antes caído nas dalgum desses carvoeiros que vão, ainda de noite, pela dura escanha dos caminhos solitários, a roubar pinheiros montes, ou nas dum desses ciganos sórdidos, que pintam os burros e lhes dão arsénico e lhes pões alfinetes nas orelhas para que não lhas caiam.
Platero zurra de novo. Saberá que penso nele? Que importa? Na ternura do amanhecer, a sua lembrança é-me tão grata como a própria alba.
E, graças a Deus, ele tem um abrigo morno e brando como um berço, amoroso como o meu pensamento.”





quarta-feira, 4 de julho de 2012

Marieta


Laura recusou estar presente no jantar mensal que um grupo de amigas realizava já há alguns anos. Tinham sido colegas na escola, no Liceu e finalmente na Faculdade. Depois, a vida profissional e sentimental separou-as um pouco mas decidiram que, todos os meses, se reuniriam para um jantar para estreitar laços e saber umas das outras.
Laura dizia:
- Não posso ir, a Marieta faz anos e a família decidiu dar-lhe um aniversário diferente. É uma questão de amor e gratidão.

- Mas quem é a Marieta?
- Não me digam que não se lembram dela! Marieta é a nossa empregada que está connosco desde que nascemos, faz parte de todas as nossas memórias.
- Temos uma vaga ideia… Bem, faz lá a tua festa de caridade com a condição de nos contares tudo. 
Laura não gostou do tom um pouco ofensivo das amigas. Marieta… bom, Marieta era a Marieta e estava tudo dito!
A caminho da casa dos pais, Laura questionava-se sobre quantos anos faria Marieta. Talvez nem ela o soubesse… Um dia, quando o irmão mais novo lhe perguntou pela idade, viu-a contar pelos dedos. No princípio, quando ela foi lá para casa vinda de uma aldeia da Beira, era ainda uma adolescente. A mãe, ainda sem os quatro filhos, dedicou-se a ensinar-lhe a ler e a fazer contas. Marieta, muita contrariada, lá aprendeu o mínimo dos mínimos. Preferia a limpeza da casa e cozinhar e neste reino tornou-se uma fada.
Um dia, Laura, ainda garotinha, perguntou-lhe se nunca pensara em casar. Sorriu intimidada. Casar… Disse que não pensava nisso mas volvido tanto tempo Laura acreditava que teria sido o maior sonho dela. Entretanto nasceram os restantes irmãos de rajada e Marieta dedicou-se de corpo e alma aos filhos adoptados, como ela dizia.
No seu egoísmo de crianças afirmavam muitas vezes: a Marieta não precisa de casar e ter filhos… tem-nos a nós! A mãe concordava e recordava as noites que ela perdera com eles, o carinho com que os criara e a ternura e orgulho com que acompanhava o êxito dos “seus meninos”, sabia bem que lhe devia mais de vinte anos de fidelidade e trabalho. Foram anos em que Marieta tomou conta da parte mais feia e pesada daquela casa. Como pagar-lhe tanta dedicação?
Por mais que todos lhe dessem um pouco de si, Marieta ficaria sempre com as sobras.

Herdava os vestidos e sapatos das três mulheres da família e ficava encantada. A mãe pensava que a tratava bem, melhor que muitas das suas amigas o faziam com as suas empregadas e admirava-se do chorrilho de queixas que estas desfiavam a propósito das mesmas.
- Tens sorte em ter uma Marieta!
Seria sorte ou o respeito mútuo que sempre existira naquela relação de patroa e empregada?
Neste aniversário todos queriam dar a Marieta um dia diferente, muito melhor que os anteriores. Só o irmão mais novo vivia ainda com os pais. O outro a seguir estava ausente, trabalhando em Espanha e as duas raparigas, já casadas, tinham as suas próprias casas.
Enquanto conduzia, Laura tinha pena que o irmão não estivesse presente para que Marieta tivesse a alegria de ter todos os seus pintainhos à sua volta. A mãe contratara um serviço de catering e empregados e deu o dia de folga a Marieta para que se fosse pôr bonita.
Ela merecia, pelo trabalho, dedicação, sofrimento e a lida não só de uma casa mas de uma família inteira.
“Marieta, o meu vestido está passado? E o meu fato, tenho uma reunião importante… Marieta, logo há visitas para o jantar, são mais quatro pessoas… Marieta, Marieta… E ela desdobrava-se sempre com um sorriso. Agora diz que está cansada, que se sente velha… tem pouco mais de quarenta anos. Que importa a idade? Quando se principia tão cedo e quando os dias são tão cheios, valem o dobro. E se ela tivesse estudado, frequentado a faculdade, movido noutra sociedade… talvez fosse minha colega, pensava Laura. Afinal era tudo uma questão de acaso, apenas isso.
Quando Marieta entrou a família já estava reunida na sala, cada um com um presente na mão.
Saltaram-lhe as lágrimas e fez-se um silêncio comovido.
Laura como filha mais velha tomou a dianteira e disse:
- Ora vamos lá cantar os parabéns.
Quando lhe deu um beijo e a apertou num abraço, Laura sentiu a sua pele macia e um perfume muito agradável. E porque não? Reparou que as mãos não estavam encardidas e até tinha as unhas pintadas. Sentiu uma enorme ternura e teve a certeza que Marieta fazia definitivamente parte da família. Quando se sentaram à mesa, a campainha da porta tocou.
- Eu vou abrir - Disse Marieta.
- Nem pensar! Eu vou. - Respondeu Laura.
Ouviu-se uma voz forte e agradável e um vendaval entrou na sala:
Marieta, venha daí um abraço. Julgavas que eu iria faltar ao teu jantar de anos? – Eis que retornava o “pintainho” ausente.
E ela ria e chorava, dizendo:
- Ai o meu menino grande! Que alegria!


Laura compreendeu então o lugar vazio à mesa e, olhando a mãe, viu-a acenando a cabeça afirmativamente.
Estava tudo combinado antecipadamente. Chegando-se perto da mãe, deu-lhe um beijo e disse-lhe simplesmente:
- Obrigada!