sexta-feira, 22 de julho de 2011

Dingo


Passam-se tantos anos num ano de ausência… Foi isto sobretudo que ele sentiu ao regressar após cinco anos em África. Muito tempo decorrera dentro dele e nas pessoas que vinha agora reencontrar. Supunha que só ele vinha diferente e que qualquer mudança na sua maneira de ser era produto natural de uma larga vivência em terras longínquas.
A solidão marcara-o como a tatuagem de um marinheiro. Solidão e luta.
Dingo não o conheceu e atirou-se-lhe furioso como a um estranho. Dingo, o cão companheiro de todos os momentos. O cão que ele vira nascer e trouxera para casa, pequenino.
O amigo, o camarada permanente, cuja alegria dependia exclusivamente dele, que só com ele brincava e da sua mão comia. Pois afinal – o que é a força da vida! – acostumara-se a outros donos e agora, preso a uma corrente, ladrava e reagia à presença daquele que fora tudo para ele. Bem modificado vinha, de certeza. Não era apenas a barba como dizia a mãe: “Com essa barba ninguém te conhece”… Era a alma. Os cães pressentem a alma.
Tudo nele se modificara… até a faculdade de querer bem. Já não era capaz de querer bem ao cão por isso o estranhara. Olhava para tudo com um olhar distante… Para a casa, para a quinta que tanto o interessara na sua qualidade de agrónomo. “Posso deixar de existir que tudo continua sem mim… Para quê afinal o esforço de sobreviver”?
“Dingo vai levar esta carta à Laura” - E Dingo ia, de carta na boca, todo ufano, a abanar o rabo.
Há quanto tempo se passara isto? Há cinco anos. Há cinco somente. E parecia há tanto tempo… Apeteceu-lhe repetir a proeza: “Dingo, vai levar esta carta à Laura…” E silabou melhor: “à Laura!” Mas Dingo em vez de obedecer, ladrava.
Pobre Dingo sempre preso agora… “Teve de ser - explicaram. “Não podemos soltar um cão que se atira a qualquer pessoa que entre na quinta. É um perigo.”
Pensou: “Quando cá estava nunca mordeu ninguém.”
A mãe, daí a dias, como quem não quer a coisa (as mães têm um jeitinho especial para isto) falou de Laura. Que se casara, talvez ele não soubesse a novidade. Casara-se com um rapaz de Lisboa, boa gente, segundo diziam, mas de pouco dinheiro. Possivelmente entusiasmara-se com o dinheiro dela. Ele não sabia que Laura tinha dinheiro, nunca pensara em tal coisa.
Admirou-se: “Pelo dinheiro e não por gostar dela…” Não quis ouvir mais. A pergunta morreu-lhe entre os lábios: “e é feliz?” A mãe poderia dizer-lhe que não até à maneira de consolação.
E como seria mil vezes pior sabê-la infeliz… Não se importou em indagar mais. Aliás que poderia ele esperar se não lhe escrevera nunca? Natural que Laura o esquecesse…


Dias depois, notou que alguém vinha buscar Dingo para um passeio. Ouvira falar nisso desde que chegara mas o desalento não o tornara curioso. Andava alheado de tudo.
Uma tarde, observou a cena da janela do seu quarto – Uma rapariguita delgada, com um aspecto semi-intelectual, semi-desportivo, levava Dingo que, aos pulos, mostrava o seu entusiasmo sem se poder conter.
- Dingo, juízo! – e a sua voz meia autoritária, meia doce, enchia o ar de melodia.
Quem era? Pelo à vontade devia ser alguém das proximidades… Não se informou. Apetecia-lhe tão pouco falar, a sua própria linguagem o cansava. E depois o mistério rodeava a cena de certo encanto.
A mãe, sempre que podia aconselhava-o a casar e ele nem queria ouvir falar no assunto.
Entretia-se pois a assistir à cena da rapariguita com o Dingo atrás da cortina do seu quarto, como se estivesse nos bastidores e com um certo fausto teatral.
E a cena de facto repetia-se frequentemente. Até com uma certa assiduidade.
Dingo parecia adivinhar os dias em que a amiga o vinha buscar. Tornava-se veludo para ela.
A rapariga frágil como um junco e Dingo com toda a sua força, ficava manso e feliz pela sua trela… Seria a irmã de Laura, a pequenita das tranças feita mulher?! Mas não eram parecidas…
Eram agora dois a esperá-la: Dingo junto da casota todo excitado, ele, por detrás das cortinas corridas, as primeiras vezes por curiosidade, agora de sorriso nos lábios e uma esperança a crescer-lhe no coração.
Certa tarde, a mãe lançou isto no espaço:
- A Sara vem buscar o Dingo. E sabes porquê? Por ti. Quando te foste embora jurou que havia de substituir-te. Não te lembras dela?
Não se lembrava. Isto é, havia uma imagem de uma garotita de tranças… mas era então aquela jovem mulher?! Ah pois cinco anos é muito tempo…
-E porquê substituir-me?
- Não sei. Diz que o Dingo costumava levar uns bilhetes teus… qualquer coisa assim parecida. Bilhetes para a Laura, mas ela é que os recebia para entregar à irmã e ficou a gostar do cão e pronto, dá-se à maçada de o vir passear e o Dingo adora-a.
No meio do silêncio em que dormia a sua alma, qualquer coisa acordou como uma planta ao primeiro toque da primavera. O silêncio, entretanto , era ainda muito largo, muito profundo, havia camadas de neve e camadas de neve por cima daquilo que ele verdadeiramente era.
Manteve-se na posição: atrás das cortinas. Simplesmente havia agora um brilho novo no seu olhar.
- Amanhã a Sara vem lanchar cá em casa. Espero que nos faças companhia. - anunciou a mãe.
Não apareceu, mas, a partir daí, a Sara ficava sempre para lanchar depois do passeio com o Dingo. E era tão agradável o timbre das suas gargalhadas que ele deixou-se contagiar. Começou a rir também. Ao princípio, era uma presença silenciosa. Depois conversou. Os acontecimentos foram-se sucedendo lentamente, muito lentamente… até que um dia, aconteceu, aquilo que já se adivinhava.
É muito bom ter um cão!!

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Na Vaga dos Lumes (Concurso Literário)


Decidi começar hoje a publicar alguns dos trabalhos que mais se destacaram no Concurso Literário dos bolg Zambeziana. Eles serão tornados públicos aos poucos, sem qualquer ordem ou

premeditação. Vamos navegar ao sabor da poesia e da prosa... Primeiro porto, um poema da autoria de Ju Rigoni.


Na Vaga dos Lumes...

De repente, estou novamente
parada à porta de um paraíso...
E me perco do meu centro.

Estou fora ou dentro?...

Se estou fora, entro?
Se estou dentro, saio?...
É confusa essa divisa...

Nessa caixa de pandora
enlouquecem os hemisférios...
À esquerda, o coração,...
o barro, a costela,
o fa(r)do da criação...
À direita, a mente,...
a árvore, a maçã, a serpente...

Ou seria o contrário?...

D’eus,... à porta, comigo,
dando tratos à Coruja
e (tri)dentes ao meu sorriso...

Ora em riso, ora em lágrima,
gritam, no escuro desse umbral,
as inteiras metades que me habitam...
Purgo e ardo, à porta desse paraíso...

Se é frio e deserto o meio,
de um lado e de outro,
há o seio, o alimento...

Aleitado o pensamento,
desafio m’eus receios...
E dessa vez, sorrio...
no oco dos parênteses
que ladeiam minha boca...
Meia vida? Vida e meia...
Que não me contento com pouco.

Ainda à porta,
a fuga nesse breve afago...
Mas,... a Coruja pia,...
expia minha insensatez...

Olho para os dois lados,...
e sou rio outra vez...

- ju rigoni (jun/2011)

domingo, 10 de julho de 2011

Um Poeta --- Um Destino --- Uma Pátria

Melhor ocasião do que esta para falar da minha Pátria, da nossa Pátria quando tantos duvidam dela e outros tantos, a tratam como lixo?

“Esta é a ditosa PÁTRIA minha amada…”

O voto cumpriu-se: morreu na Pátria, a que tanto e tão longe fora servir. Passaram-se mais de quatrocentos anos. A memória dos homens pouco pôde guardar daquela vida que se queimou na aventura e no estudo, no amor e na desgraça. Mas os seus versos aí estão, e nos versos está o homem, o homem que não é só ele mesmo, que ficou para nós como símbolo, imagem de Portugal vivo – Portugal feito homem para que pudéssemos amá-lo melhor.
Estudante em Coimbra, boémio em Lisboa, soldado em África e no Oriente, cristão fervoroso e artista requintado – enamorado do Céu e da Terra… Aí temos o génio português na sua mais alta expressão, condensado na obra de um poeta; aí temos o destino português, resumido na obra dum homem.
O vento da aventura que ainda soprava em Portugal no século XVI levou Luis de Camões para fora da Corte, para as terras de África onde se bateu contra os infiéis, para as Índias remotas onde amou e sofreu. E de todas as ausências, e de todas as partidas que ele viveu concretamente, ficou nos seus versos o travo de uma saudade que não se apaga:

“Já a vista pouco a pouco se desterra
Daqueles pátrios montes que ficavam.
Ficavam o claro Tejo e a fresca serra
De Sintra, e nela os olhos se alongavam.
Ficava-nos também, na amada terra
O coração, que as mágoas lá deixavam
E já depois que toda se escondeu
Não vimos mais enfim que mar e céu”

Mas nem a dor da ausência detém uma inquietação profunda que trabalha. A saudade o que é, no fundo, senão “a febre de além” de que fala outro poeta?
Muitas vezes, ao longo da história portuguesa e da biografia de Camões, essa INQUIETAÇÃO FOI O ESTÍMULO DE UMA ACÇÃO HERÓICA, a força que moveu as espadas em todas as loucuras de valentia, o vento que soprou as velas de todas as descobertas.
Os seus versos continuam hoje a fazer história e a apontar caminhos. Foi um dos que firmaram com sangue o destino de Portugal e a sua voz retumbe para além dos séculos, com convicção e incitamento.
A sua vida foi a imagem condensada do destino português: na saudade, na insatisfação que nada acalma, no amor da glória e da luta, e, sobretudo, na vocação irresistível de SER PORTUGUÊS!
Pelo mundo, aos pedaços repartiu a portugalidade. Retalhando-se, continuou inteiro, fundindo-se imprimiu carácter nos que participavam na fusão… Outro poeta diria: A minha Pátria é a minha Língua!
É esta PÁTRIA gloriosa hoje vilipendiada e mal amada… contudo, as suas fronteiras não se podem nem se DEVEM traçar numa linha ininterrupta, Pátria que vive e ama e fala PORTUGUÊS nos cinco continentes do mundo.

“Esta é a ditosa PÁTRIA minha amada…”



“Cantando espalharei por toda a parte”….
Amália Rodrigues Cantou Camões! Hoje, Ana Moura, fá-lo também!


sábado, 2 de julho de 2011

Notícias Daquele Rio...

Observava-me nele como num espelho… Habitavam naquelas águas as minhas emoções mais profundas. Ali, vinha acenar aos amigos que chegavam e partiam… Fins de tarde sem horas, momentos de intimidade, com os amigos, em que soltávamos tudo o que guardávamos ou adiáramos. Conversas feitas de tranças prateadas que vogavam sobre as águas a caminho do ocaso. Sentados sobre o largo muro víamos a maré subir… Subia também o tom das nossas confidências ou, por vezes, de conversas banais. Falávamos sobre tudo: amigos comuns, literatura, cinema, música… Não escolhíamos as palavras. Os assuntos vinham como uma quinquilharia amontoada. Trazíamos aos ombros uma alegria verdadeira, afectos trocados e mãos que aplaudiam com sinceridade. Os sorrisos, esses, ficavam no rio para não murcharem e serem apanhados por quem chegasse depois de nós.
Ali, vínhamos recomeçar muita coisa: um amor perdido, a vida depois da morte de alguém muito querido ou simplesmente recomeçar por respeito a nós próprios. Ficava-se até a noite chegar tocada já pela aurora… Noites longas, tantas! Mas recomeçávamos sempre. Seria a força do rio que, silenciosamente, nos ouvia? Purificávamo-nos na espera e partíamos cingidos de sonhos e coragem.
Vínhamos ali todos os dias… “assinar o ponto”, diziam alguns. Mas o verdadeiro era a relação que construíamos uns com os outros, os diálogos marcados pelo amor, pela dádiva, pela tarefa de ter um projecto em comum…


Mas, um dia, o rio encheu-se de sombras, o caudal subiu de tantas lágrimas ali vertidas e já não havia ”sinais” de tantas vidas desfiadas nas suas margens.
Dizem que o rio ficou mais escuro e que em noites de luar ele chora e geme e balbucia nomes que ninguém consegue entender.
Mas o rio continua em estado de graça, nunca traindo o que ouviu há muitos anos. Dizem os que lá voltam que ele reconhece a voz de cada um e continua igual no tempo e no espaço.
Hoje, o meu desejo confunde-se com a saudade e, apetecia-me, sentada no velho muro, ver passar casais de mãos dadas, crianças a rir e a saltar de contentes e a cidade debruçada sobre o rio como se fosse uma enorme mesa onde alimentavam o olhar, a beleza e a vida.
Hoje, apetecia-me…