segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Todos os Santos…

(Os que já partiram e os que vão a caminho…)

Em memória de todos os nossos familiares e amigos que fizeram o voo maior e que nestes dias lembramos com mais saudades, colocamos flores orvalhadas com lágrimas nas suas sepulturas e acendemos-lhes velas da fé e da esperança….


Quando Veio a Morte

Quando veio a morte,
Quase a não reconheci.
Não trazia caveira
Nem tíbias,
Nem foice,
Nem ampulheta,
Nem mortalha,
Nem catafalco.
Não vinha
Vestida de luto,
Nem envolta
Em véus de viúva
Nem trazia
Luvas pretas.
Não vinha pálida,
Nem apresentava a rigidez
Esquelética
Das más noites.
Não cochichava
As suas duas ou três palavras,
Arrancadas aos soluços,
Com palavras acanhadas
Que nada dizem.
Não trazia água benta,
Nem o aperto de mão,
Nem a chávena de café,
Nem o pêndulo parado,
Nem os postigos fechados,
Nem flores,
Nem coroas.
Veio sem convite
E sem dobrar a finados…


Vinha vestida de Primavera,
De músicas e de cantigas.
Tinha tirado a máscara e ria
Como um recém- nascido.
Falava como a Palavra
Com um acento feliz.
A sua cabeça de ressuscitado
Assemelhava-se à do jardineiro.
Seus passos deslizavam
Como uma dança de namorados,
E vinha

De rosa na mão.


- Jean Debruynne, in "Mourir"

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Viajante das Estrelas

De repente a angústia caiu sobre mim. Não, não podia ser tinha que a sacudir. Retomei nas minhas mãos a minha alma decidida a gozar a cálida noite de Verão. O perfume das flores continuava a subir do jardim multicolor e a claridade branca das estrelas brilhava sobre o veludo do céu. Parecia e era uma imensa abóbada pontilhada de lantejoulas prateadas. Na cidade era impensável deslumbrar-me com este espectáculo. Estava feliz apesar da angústia que há pouco pairara sobre a minha primeira noite de férias.
Sentei-me no meu banco amarelo muito perto dos grilos que interpretavam a sinfonia nocturna que me faz lembrar a minha terra distante.
Os maracujás por de trás de mim começavam a pintar-se de lilás anunciando que dentro em pouco estariam maduros. Como a sua flor é linda como um poema de amor! Encostei a cabeça naquela almofada verde e olhei de novo o céu deslumbrada. Têm asas os meus sonhos...
Inesperadamente uma luz envolveu-me toda ofuscando o meu olhar. Mas o que seria aquilo? Existiriam realmente OVNIS? Senti umas pancadinhas discretas como se alguém abrisse ou fechasse uma janela, enquanto ouvia uma voz perguntar-me suavemente:
- Queres vir comigo?...
Não, devo estar a sonhar – pensei meio entorpecida.
- Quem és tu? – perguntei pensando que tudo não passava de uma ilusão.
- Sou um estrela deste céu que tanto gostas e convido-te a vires comigo espreitar lá do alto esta Terra que já foi mais verde.
- Mas como é que eu posso ir contigo? - perguntei incrédula.
- É fácil. Basta quereres de todo o coração fazer esta viagem comigo e pensares com a tua alma.
- Pensar com a alma? Que coisa mais disparatada...
- Vá fecha os olhos e pensa que iniciaste a tua viagem...
Que era feito do meu banco amarelo? E os grilos? Via apenas o reflexo rosa dos rododendros na água fresca de um ribeirito e a toutinegra cantando perdidamente. Os belos poemas que eu mais amava passavam como asas de cisne por sobre a superfície das águas que cada vez ficavam mais distantes.
Mais alto, mais alto... e voz da estrelinha ecoava pelo céu.
- Mas onde me levas? – tornei a perguntar embriagada por aquela deliciosa sensação.
- Onde quiser o teu coração. Recordas-te? Basta querer...
- Sim e pensar com a alma... repetia baixinho como um desejo.
...Como eram bonitas aquelas ruas e familiares... já teria estado por ali?
- O que é aquela casa tão grande, branca e com torres?
- É uma igreja. Uma jóia do Século XVIII, de linhas puras sóbria e espiritual também...
- Mas há muita gente a entrar nela... É um casamento não é?
- Sim é um casamento.
Eis que descortino entre a multidão uma silhueta que me é querida vestida de facto azul escuro, um cabelo feito de oiro pálido. Vem acompanhado de muita gente. Tem uma covinha no queixo e olhar ansioso. Esperaria alguém? Oiço gritar – Chegou a noiva, chegou a noiva...
Nenhum pintor conseguiria pintar aquela revelação envolta com que numa nuvem branca e jamais algum poeta poderia exprimir a emoção interior daquela jovem mulher.
- Vão ser felizes? Perguntei curiosa.
- Sim, amam-se muito mas irão sofrer. Na vida é preciso escolher e eles decidiram um caminho a dois.
- Deixa-me ficar mais tempo para ouvir o que dizem um ao outro – pedi devagarinho.
- Não podemos e tu já sabes como tudo terminará.
- Sei mesmo?
A estrelinha não respondeu – vamos, vamos depressa o Sol está a nascer e eu terei de regressar a casa.
- As estrelas têm casa?
- Têm, moram na lonjura do firmamento.
Não entendi muito bem mas segui-a no seu rasto luminoso.
Havia rosas, muitas rosas brancas que me eram oferecidas por umas mãos fortes e masculinas. O que me disse? Já esqueci tudo. Nos seus olhos castanhos dourados como tardes de Verão li tanto amor que as minhas mãos tremiam nas suas, que ele beijava murmurando palavras doces de amor. A hora da felicidade.
Ao longe há um campo de lilases em flor e a aurora que chega clareando tudo. Mas os lilases têm nos olhos gotas de orvalho. Os lilases choram?
Oh, o meu vestido branco com reflexos de pérola... sou uma noiva não é? E as fitas azuis? É um festival de luz para os nossos corações felizes. Dia radioso! As mimosas e rosas rescendem...
Por falar em rosas, onde está o meu ramo? Não o vejo. Não tenho nada nas mãos... rodo os dedos e encontro duas alianças. Duas alianças? Porquê duas? Sinto lágrimas nos olhos...
De novo o perfume das flores, o odor da terra. Oiço os grilos...
- Estavas a dormir, mãe?
- Não te rias, desci agora de uma estrela e andei por aí.
Ficamos calados. Há silêncios que nos completam e nos alimentam. Os crucificados salvam o mundo...
- Há paz nos teus olhos, minha querida senhora – e dando-me um beijo sorriu fazendo na face uma doce covinha que eu aprendi a adorar.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O Preço do Amor



Beatriz era uma jovem mulher, bela e muito elegante! Pecava por um grande senão, era doentiamente ciumenta! Mas diga-se em abono da verdade que estes ciúmes eram alimentados pelo “Adónis” do seu marido que não lhe escondia os seus gostos de conquistador encartado! Se não fora isto, o que era já muito, viveriam na paz dos anjos. Quando os ventos sopravam cinzentos, estalava a guerra… e esta surgia por um rasto de um perfume suspeito ou por uma mancha de batom indiscretamente posta no lenço branco de Jorge.


Beatriz zangava-se, chorava e retirava-se para casa dos pais. Metia-se na sua cama de solteira onde passava dias a fio. Entretanto o marido delirava com estas doces férias e passeava a sua sedução pelas mulheres que o assediavam. Mas, volvidos dias, suspirava de arrependimento e um peso na sua consciência retirava-lhe todo o encanto da liberdade da vida de paródia de rapaz. O que ele gostava mesmo era de atraiçoar Beatriz, quase no seu nariz, o que lhe dava aquele gostinho de patifaria (há homens assim).
Recomeçou a namorar a mulher usando toda a sua arte de um grande D. Juan. Beatriz comoveu-se com tanta ternura e mimos. Os pais e os amigos aconselharam-na:
- Ninguém muda assim de um dia para o outro…
- Ele está arrependido e mudado… - afirmava Beatriz.
Regressou ao lar, como todos já esperavam, e tiveram o seu quarto minguante de lua-de-mel!
Depois, a vida retomou o ritmo habitual até à primeira cena de gritos e lágrimas quando Jorge ficara mais tempo no escritório. Loiças partidas, mala feita e Beatriz refugiou-se de novo na casa dos pais.
Certo dia Beatriz ficou adoentada, mal comia e teve até um desmaio. Jorge ficou em pânico e foi buscar a mulher para casa. Aflito, mandou chamar um médico. Disseram-lhe que havia um que morava no andar de cima… Quando o médico chegou, um jovem bem apessoado formado há pouco tempo, examinou Beatriz e declarou que ela estava à beira de uma anemia, precisava portanto, além dos medicamentos, injecções fortificantes e uma vida sossegada.
Jorge perguntou ao clínico se lhe arranjava uma enfermeira para vir dar as injecções à mulher.
Delicadamente, ele ofereceu-se para esse serviço.
- Não me custa nada… De manhã, antes de ir para o Hospital, passo por aqui… - E o assunto ficou arrumado.
Nos primeiros dias o médico mal se sentava, era apenas o tempo de dar a injecção!


Depois, já conversava e demorava-se mais um pouco. Daí, passou aos galanteios e não tinha hora de ir para o hospital… Tempos depois, Beatriz deu conta que o médico gostava dela e isso alimentou o seu ego e a sua auto-estima não podia estar mais em alta!
Porém, infelizmente, há horas do diabo e, nessa noite, Beatriz descobriu uma mancha de batom no colarinho da camisa do marido.
Voltaram os tempos de guerra:
- És um devasso e um mentiroso. Não tens emenda!
Jorge desculpava-se como podia, defendeu-se mal, ajoelhou-se aos pés de Beatriz com deficiências de encenação. Beatriz não resistiu e cheia de vaidade declarou ao marido que tinha quem gostasse dela, o médico estava perdidamente apaixonado e ela pensava em lhe corresponder!
Ardeu o mundo! Jorge atiçado como um leão, enfureceu-se, bateu com os punhos na mesa e gritou de tal modo que toda a vizinhança veio às janelas.
Aquela cena de ciúmes acalmou Beatriz e a fúria zelosa do marido lisonjeou-a…
A questão acabou por ali e deu lugar a nova lua-de-mel. Jorge mandou pedir a conta ao jovem médico e dispensou os seus serviços. Claro que o clínico entendeu mas não aceitou: estava perdido de amores por Beatriz! Escreveu-lhe então uma grande e louca carta de amor que pôs Beatriz nas nuvens e nos picos da vaidade.
Quando o marido chegou do trabalho e para o arreliar, entregou-lhe a carta num gesto de esposa submissa e honesta que cumpre o seu dever! Bem, o barulho foi tão grande e espalhafatoso que Beatriz teve receio que ele fosse bater à porta do médico para uma briga de honra. Acalmou o marido conforme lhe foi possível, evitando que surgisse um pugilato entre os dois. O médico, não recebendo resposta às suas cartas acabou por desistir e não insistiu mais.
Beatriz ficou um pouco sentida com aquele súbito desinteresse…
Jorge perguntava todos os dias à mulher:
- Então o médico não te escreveu mais?
- Claro que não! Ficou bem esclarecido…
Mas Jorge duvidava e quase todos os dias vinha à carga a recepção das cartas. Beatriz jurava que não tinha recebido mais nenhuma mas Jorge teimava e dizia-lhe que sim e que queria ver a carta… Beatriz chorava e pensava que o marido endoidecera…
Jorge vivia num inferno de angústia e ciúme e a exigência da carta que temia Beatriz tivesse recebido obcecava-o…
A vida tornou-se um inferno naquela casa, onde só se ouviam gritos e pedidos:
- Tu que não me mostras a carta é porque estás feita com ele…
- Não recebi nenhuma carta!
- Recebeste sim!
- É falso!
- Não me digas isso que até te mato… e crispava os punhos roído de ciúmes.
Beatriz sentia-se desforrada: agora quem sentia ciúmes era ele!
Mas Jorge não desistiu dos seus inquéritos:
- Recebeste sim uma carta e estás a mentir! Fui eu quem a escreveu para te experimentar e se tu não ma mostraste é porque estás interessada nele…
Beatriz estava incrédula: tanto barulho por uma carta escrita pelo próprio marido e que afinal não recebera mesmo…
- Recebeste sim e julgaste que era do outro!
Enfim a carta tinha a direcção deficiente e Jorge, tempos depois foi encontrá-la num cacifo dos correios.
Beatriz indignada voltou para casa dos pais e pediu o divórcio. Os pais arranjaram-lhe de imediato um advogado. O processo já estava no tribunal e Jorge desesperava e não queria ouvir falar em divórcio. Não podia viver sem Beatriz… a sua ausência aumentara-lhe o seu amor.
Escrevia-lhe longas cartas, enviava-lhe flores todos os dias e caixas de bombons… Beatriz entrincheirada na casa dos pais não se rendia! Jorge vendo que perdia a partida, começou a exceder-se nas suas gentilezas: uma pulseira em oiro que Beatriz sempre desejara ter, um casaco de peles muito cobiçado e uma pregadeira de brilhantes…
Ela aceitava de bom grado todos os presentes mas continuava firme na sua…
Ao telefone ele desfazia-se em ternuras e promessas:
- Farei tudo o que quiseres, dar-te-ei tudo o que pedires…
- És um aldrabão! Nunca mais volto para ti e fica sabendo que hei-de casar com outro…
Jorge sentia-se morrer:


- Querida, perdoa-me… Olha vou comprar um andar novo, daqueles que tu gostas, voltado para o rio…
A voz dela tremeu:
- Um andar com seis assoalhadas naquele prédio que eu gostei?
- Sim, querida!
Beatriz ficou sem respiração, o corpo com asas…
- Daquele que, das varandas, se vê a foz…?
- Sim, esse mesmo amor. Vamos ver as casas?
Ela pairava nas nuvens, talvez no 8º andar do prédio, quase a chegar ao céu…
- Vem-me buscar depois do almoço, meu querido!

sábado, 1 de outubro de 2011

Crepúsculo



Gostava de poder dizer-te,
meu amor perdido,
Esta sensação do mundo já vivido que existe em mim.

Gostava de poder correr,
Mão na mão, olhos nos olhos, pelos areais desertos
E reencontrar o mundo que falta viver.

Gostava de vencer o crepúsculo,
Com um sorriso alegre no corpo jovem.

Mas tenho receio que te juntes a mim nesta noite
Onde a estrela da manhã não aparece.

Espera-me para lá da madrugada.
Sabes, amor, eu talvez volte!



- José de Almeida, In “Palavras de Outono”