quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Gavetões do Tempo



Outubro abre as portas a um novo “gavetão” do tempo. Nunca como em Portugal tive e tenho tantas vezes a percepção da despedida.
Quando guardo a roupa de verão para a trocar pela de inverno, há sempre em mim uma inquietante pergunta – voltarei a vesti-la? Foi uma das coisas mais difíceis a adaptar-me quando aqui cheguei – a estes compartimentos estanques em gavetas como lhes chamo, esquartejando o tempo, tornando-o mais diminuto sem o espaço suficiente para apreciarmos as horas.


Em Quelimane o ano tinha de facto 365 dias, abafados por uns casaquitos leves de Maio a Julho, mantinhamos o guarda roupa, a alegria e a boa disposição do primeiro ao último dia do ano. Aqui, como li algures numa revista, “ o verão é o tempo de um dia... e o Inverno o da travessia de uma longa estação”.
Podem dizer-me que é estonteante observarmos os ramos desnudados das árvores cheias de nózinhos anunciando em força a primavera - Concordo! Podem dizer-me que é deslumbrante quando o outono salpica de poalha doirada e vermelha a natureza e os caminhos – concordo! Podem finalmente dizer-me que o Natal tem mais magia e encanto à volta de uma lareira – concordo!
Mas que a mim me parece que vivo menos tempo com este trocar de roupa pelos quatro gavetões, é um facto. Falta-me a continuidade. É como se fosse ver um filme e estabelecessem quatro intervalos; não abarcaria de certeza, em profundidade, ao pormenor, o enredo de toda a história... – também eu sinto que, nestas trocas e baldrocas de camisolas por t-shirts e vice-versa, o tempo dilui-se, e nós, espectadores deste filme que é a vida, perdemos muitas vezes o fio à meada.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Flores de Outono




Agora vou reclinando o corpo
entre a terra e as estrelas.

O espaço é breve
para a brisa do mar
que ainda soa.

E no entanto adormeço
no meu sonho,
sereno de harmonias

incendiando o fino pó
da terra
com estas flores violentas,
exíguas, do outono.


- Vieira Calado


terça-feira, 11 de setembro de 2012

Uma Aventura em Moçambique


Setembro chegava ao fim e os dias tornavam-se maiores, mergulhados num calor que, dentro de pouco tempo, seria sufocante. Por isso, decidimos que a nossa partida teria de ser muito de madrugada, quase de noite ainda; aliás como sempre acontecia nas longas viagens de carro pelo interior de Moçambique. Esperavam-nos 1600 quilómetros entre Quelimane, na Zambézia, até à capital Lourenço Marques (actual Maputo), no sul do Save.

Antes de nos deitarmos, tudo ficou pronto: bagagem, cesto de merenda, garrafões com água e um de gasolina, para além do imprescindível mapa, onde uma linha sinuosa ressaltava o itinerário de uma grande aventura. Viajamos num cómodo Datsun 1200! Até aos limites da Zambézia a viagem foi normal – eram estradas por demais conhecidas. Ao embrenharmo-nos na densa floresta tropical, numa grande extensão ainda virgem, começaram as peripécias. A estrada de terra batida ou de areia solta grossa semelhante à do deserto era percorrida quase em silêncio. Durante muitas horas não nos cruzamos com ninguém. Devido à vegetação cerrada, zona de caça grossa, e ao período de guerra que se vivia, as aldeias indígenas não existiam, razão pela qual não víamos vivalma. Passávamos assim pela onda do medo. De repente, no meio do colchão de areia fofa da estrada foram aparecendo aqui e ali garrafas de cerveja Manica – cheias e bem engarrafadas. Foi uma alegria e enchemos a bagageira com a loira bebida. Mas, alguém alvitrou – “e se é uma armadilha?”. Fez-se um pesado silêncio que reinou até encontrarmos depois de mais de 200 quilómetros por floresta, uma cantina (loja do interior) onde nos abastecemos de tabaco e água.



À porta, bem arrumadinho, descarregava um camião da Manica. Estava explicada a sementeira de tanta garrafa. Com os saltos, algumas grades rebentaram e deixaram cair o seu produto no macio da estrada, não dando sinais ao motorista do que se passava.

Depois de deixarmos Inhaminga a chuva começou a cair torrencialmente. Em breve, o que era veludo passou a ser um inferno lamacento. Mais à frente, quatro ou cinco camiões altos e potentes atolavam as suas grandes rodas sem conseguirem sair do sítio onde estavam. Tal como elefantes pesados e pouco maleáveis, quanto mais os motores roncavam mais as suas “patorras” se afundavam. Ficamos em pânico. Com um carro baixinho e sem a estatura dos outros, que seria de nós? Conseguimos abrir as portas e a água correndo como um rio ficava ao nível do nosso “vermelhinho”. O nosso condutor, também ele experiente de muitas viagens pelo interior, pisando o pé no acelerador soltou o grito do Ipiranga: “Agora ou nunca”! Acreditei que iríamos  ser inundados e o carro se quedaria sem movimento, agarrado ao lodaçal como uma lapa. Foram os minutos mais sufocantes da minha vida. Quando abri os olhos, o Datsun estacionara triunfante por cima de uns caniços numa zona mais alta e seca da estrada. Toda esta gincana em poucos segundos, foi acompanhada por palmas dos motoristas dos camiões que nas suas ilhas flutuantes esperavam pelo rebocador.

Já era muito de noite quando pernoitamos em Vila Machado, numa residencial simples e parca em tudo. No entanto o jantar soube-nos como o melhor dos banquetes e a cama foi um pequeno oásis onde o cansaço deu tréguas ao sono.

Por ser feriado, avisaram-nos que poucas lojas ou restaurantes encontraríamos abertos para almoçar; Mas, à socapa, no jantar de véspera, três pãezinhos com bacalhau cozido e um ovo entraram num saquinho de plástico, para o que desse e viesse.
Deixara de chover e o sol estava outra vez no seu pino. Começamos a racionar a água. Às três da tarde a fome era por de mais dolorosa e foi aí, nesse momento, que, umas simples sandes de bacalhau (algumas lascas) e uma rodela de ovo cozido foram consideradas o melhor manjar do mundo.
Ao fim da tarde, encontrávamos civilização – Vila de João Belo – onde nos dessedentámos com o pouco que havia disponível. “Comam tudo o que puderem pois só pararemos em Lourenço Marques” – um conselho prudente do motorista. Já a noite ia alta quando passamos pela terra da boa gente (Inhambane) e às 23h00 fazíamos a entrada triunfal em Lourenço Marques. Depois de vários enganos, metemos pela Avenida de Pinheiro Chagas ao encontro do nosso destino.
Já lá vão trinta anos e nunca mais pude esquecer esta viagem, que foi uma aventura inesquecível.

Maria de Graça Machado
In, Público, 18-5-2002

sábado, 1 de setembro de 2012

Às Portas de Setembro




Estou só e há silêncio… e nesta quietude que é um bálsamo, quero dizer como te recordo ainda! Não posso culpar a vida que afinal me deu tanto. Seria apenas um subterfúgio para adoçar a minha saudade! Setembro é um mês que nos diz tanto: guarda ainda o calor do verão e as folhas a desprenderem-se das árvores; recorda já a próxima partida!
Escolhemo-lo para trilhar um caminho a dois que, hoje, faço sozinha! Partiste cedo demais com um vento gélido e selvagem que queimou os nossos melhores desejos.
Mas hoje quero celebrar a alegria do nosso último encontro, a felicidade de sabermo-nos um do outro embora tu já adivinhasses que o Outono estava a chegar… Tecemos a nossa teia de amor num espaço de cristal… tão quebradiço! Talvez hoje tivesse tido mais paciência na arte de esperar, ignorando que usufruías o último diálogo dos nossos corpos.
Mas Setembro continuou persistente e as últimas rosas desabrocharam no teu jardim.


- É preciso abrigá-las por causa do próximo frio. - Disseste acariciando-as. 
Falarias de um outro frio que pressentias dentro de ti? Ainda hoje não sei!
Às vezes penso que já vivi demais e que a vida se tornou numa rotina onde já nada há a descobrir! Precisaria de um milagre estrondoso para recomeçar com a mesma alegria do começo de todas as coisas.
Não sei se me compreenderias… Para ti já não há fronteiras e muito menos muralhas. Mas há, de certeza, a doçura inefável dos teus olhos e o sussurro da tarde que me diz: “Tem confiança, miúda!”
Sei que te orgulhas de mim quando, cada noite, construo um amanhã, burilando-o com muito cuidado com medo que tudo se desmorone… Às vezes, não consigo realizar tudo mas não tenho horas vazias. Aprendi que a dor também é uma canção de amor que faz de mim alguém de pé para vencer caminhos. Espreito serenamente a aurora a irromper triunfante e a devolver à natureza e à minha vida a claridade que enriquece as coisas.


Lembras-te da canção, “Setembro chegou, vamo-nos separar…” que tu não gostavas nada e tantas, tantas despedidas tivemos durante dois anos… Contei os dias, as horas e os minutos e achava que o tempo passava tão devagar!
Rezo por ti, embora ache que és tu quem deve rezar por mim porque entendes tudo o que se passa comigo. Acredito que, por vezes, adormeces dentro da minha alma porque sinto um leve bater de asas.
Continuo a gostar de Setembro que reaviva em mim antigas canções esquecidas e me recorda o calor das tuas mãos. Pensei sempre que envelheceríamos juntos e colheríamos todas as flores que nos estavam destinadas. Mas o destino… (mas há destino?) baralhou tudo!
Porquê? Porquê? E fico de novo inquieta. Sei que não devo fazer demasiadas perguntas porque muitas respostas já eu encontrei no caminho da fé!
Não fiques triste… Sinto que me ajudas a cortar os cardos e os silvados e que caminhas comigo.
O meu caminho tem uma esperança: Sei que quando nos encontrarmos de novo, não haverá mais despedidas e será Setembro sempre nas nossas vidas.