segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Uma Chávena de Café


Quando te entreguei a chávena de café… que haveria no meu gesto? Que diria o meu olhar?
Alguém que chegara de longe para negociações turísticas, correra todas as praias, experimentara todos os hotéis, provara todos os restaurantes, queria conhecer o interior de uma casa portuguesa. Alguém que eu receberia como amigo do Guilherme. Guilherme, meu noivo.
Noivo? Que ironia! No meu dedo, um anel de noivado, por sinal bonito e antigo, jóia de família. No meu coração, incerteza, ou já a certeza de que a vida nos separava a passos gigantescos e que, só por respeito humano ou hábito social, mantínhamos relações que se modificavam em tortura.
Vê como são enganadoras as aparências; tu, que julgavas vir acompanhado pelo meu noivo, eras afinal quem mo trazia depois de muitas semanas de ausência. Quando entraram eu acabara precisamente de perguntar a mim própria se algum milagre faria renascer esse amor duradoiro que nos unira, já nem sabia em que tempo. Preparada, por conceitos burgueses, para o casamento como fim único da mulher, balançava-me entre o comodismo da aceitação, que todos classificavam de crise passageira, e uma decisão que me amarraria ao estado de solteira. Depois das ausências Guilherme voltava contrito. Protestos de amor: “se não fosses tu, perdia-me…”. Seguiam-se os projectos de trabalho sério, emprego e uma necessidade urgente de estar comigo. - “Vamos marcar a data do casamento!” - dizia. Nessas alturas, sem o compreender, estava a perdoar-lhe por inércia, a que se ligava, porém, um ténue fio de esperança.
Mas o que haveria no meu gesto ou te diria o meu olhar, ao entregar-te a chávena de café?
Solidão, abandono. Foram corteses as minhas palavras? Imperativo de educação, atitude diplomática, hospitalidade, como queiras... Nesse instante, descobriste que me amarias. Estranhas condições, as do amor!
Pouco tempo depois Guilherme resolvia esclarecer definitivamente a nossa situação. Ainda por influência tua? Ah, não o sabia! Retiro do dedo o anel de noivado, como uma libertação. Revi o meu passado e o meu presente, planeei um futuro em que, confesso te não incluía.
Aliás tendo já ultrapassado a idade dita romântica, não veria em cada homem um possível marido. E a tua imagem diluía-se entre as confusas narrativas dum país sul-americano interessado em turismo, o que nada me importava a mim. Queria trabalhar, encontrar um rumo positivo mas que ninguém compreendia e apoiava: “só trabalham aquelas que precisam e nunca os ricos devem tirar lugar aos mais necessitados”…
Foi portanto indiferentemente que recebi a tua primeira carta, até desagradadamente. Amigo do Guilherme – meu inimigo. Quando outras cartas chegaram e me forçaram a uma resposta obedeci ainda àquele clima de pacifismo, e mais nada.
Principiaste a contar-me histórias de encantar. Planta que renasce, alegria que não termina, música que se desdobra, caminhos pujantes de frutos. Mas eu tinha medo. Perdera anos com alguém que não me merecera. Mas tu falavas-me em novos conceitos e que me transformarias na mulher realizada que sonhara ser. Mas ainda duvidei. Conhecia-te mal. Convidaste-me a vir conhecer-te de perto, conhecer a tua cidade, o teu trabalho, os teus pais. E eu vim!
Vim e descobri que o teu amor era um sentimento muito diferente daquele que me envenenara. Que me oferecias uma existência moldada em dimensões largas e generosas onde me integraria, liberta. Que todos os meus sonhos (utópicos alguns) se tornariam realidade. E tudo porquê? Porque me amavas sem absorvência doentia, respeitando a minha personalidade.
Vim e fiquei. Somos agora esta coisa maravilhosa: um casal que se ama e a que, no entanto, não basta o amor.
Acabamos de entrar em casa, após um dia de trabalho e preocupações.
Estamos cansados mas felizes. Vivemos!
Perguntei:
- “Que te apetece tomar?”
Respondeste:
- “Uma chávena de café, igual à daquele dia…”

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Amar o Nosso Marido


Amar o nosso marido é aceitar que ele seja diferente de nós; sabê-lo já é muito bom, mas poderíamos ser tentadas a fazer esforços para que ele se torne como nós, e isso seria então levá-lo a falhar na sua missão.
Aceitar o nosso marido tal como ele é, com a sua psicologia de homem, é ter confiança nele, e isto é importante, pois assim como não se pode educar uma criança sem confiança, também não se pode construir um lar seguro e estável sem ela. De contrário, a suspeita, a dúvida e depois o ciúme, virão instalar-se no nosso coração.
Façamos o esforço de sermos transparentes um ao outro; não deixemos que passe nunca um dia sem explicar uma pequena coisa que seja, guardada em nós. Aquilo que hoje é um pormenor, pode transformar-se amanhã numa montanha.
Somos o complemento um do outro, não devemos portanto querer tornar-nos iguais em tudo. Há mulheres que “apagam” por completo o marido e este, para não ter maçadas, para viver em paz, deixa-se levar.


Mas mesmo se tivermos um marido pouco enérgico, o nosso dever é ajudá-lo a desenvolver a sua personalidade tanto em casa como no seu trabalho.
Amar o nosso marido é querê-lo diferente de nós.
Amar alguém é amá-lo como ele é e não como gostaríamos que ele fosse e, é sobretudo, desejar que esse alguém se torne melhor.
Amar o nosso marido querendo que ele seja diferente de nós, é ajudá-lo a realizar a sua própria missão; é querer que ele se corrija dos seus defeitos, não porque isso seja mais cómodo e agradável para nós, mas porque nos aproxima mais um do outro.
Se não temos um programa de vida em conjunto e se ainda o não fizemos, nunca é tarde para começar.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Anda, vem!


Como uma luz rompendo a escuridão, assim começamos nós um novo caminho! Como será?
Parece-nos tudo ainda muito distante e sem contornos nítidos! Mas não foi sempre assim?
Contudo, há claridades que rasgam as trevas e perfumes conhecidos que nos vão chegando…
Disseram-nos que era um ano difícil mas, desde tempos remotos, o começo foi sempre uma incógnita… Somos caminheiros! Abrimos veredas, atalhos, estradas e avenidas. Acompanhamos o tempo com firmeza e encanto. Em cada sinal contrário e em cada adversidade ganhamos novas forças. Em cada tropeção tivemos motivos para sacudir as pedras do caminho. É certo que os tempos actuais nos deixaram um pouco aturdidos com a perspectiva de novas direcções. Vamos segui-las sem tibiezas.
Somos gente com uma alma forte ou forjaram esse nome para nos enganar? Não tenhamos medo: é necessária esta caminhada! Anda, vem! Não seremos vencidos! Se o formos, teremos de tirar uma atroz conclusão: Ou somos um povo caído de borco na lama de qualquer caminho, ou então um povo de cobardes, vencidos ingloriamente pelo medo.
Anda, vem! Esperam-nos dificuldades! Com certeza! Mas depois, quando o céu passar a ser uma mancha azul transparente e o ar possuir a leveza do sonho e todas as nossas dúvidas se converterem em realidades serenas, os nossos olhos abrir-se-ão de espanto por termos tido tanto medo!


É extraordinário subir a montanha, beber outros ares, olhar a estrada numa outra dimensão!
Não nos inquietemos! É assim que se constrói a felicidade, essa doce e fagueira virtude que todos desejamos possuir. Não nos assustemos com a subida. À medida que formos subindo, o ar fica mais leve e cresce a vontade de continuar…
Anda, vem! Mesmo que o desencanto te assalte… não deixes escancarada a porta da moradia onde habita o teu coração. Há uma tropa de assalto disposta a atacar-nos… e sabes porquê?
Porque conhecem a força do nosso querer e sabem que desistir não é o nosso lema.
Na fuga nada se aproveita. Perde-se o mérito, a honra e a razão. Vale a pena fazer-se o confronto. A nossa razão estribada no espírito e opondo-se à razão sustentada pela matéria suja.
Anda, vem! Vamos opor a aragem fresca da nossa madrugada de esperança à aragem sibilante das noites escuras onde reina a dúvida e o medo.
Venceremos? Eu prometo-te que sim!
Anda, vem!


quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Está Descansado



(História contada pelo meu pai)

O meu pai tinha várias lojas espalhadas pelo interior da Zambézia. A loja-mãe, ou a sede, era a de Namacata, a doze quilómetros de Quelimane ligada por uma óptima estrada e rodeada por uma paisagem diversificada que sempre me encantou: de um lado o extenso palmar quebrado aqui e ali por pequenas aldeias indígenas, do outro os arrozais misturados com zonas de nenúfares. Depois, quase a chegar à cidade, as mangueiras fartas, pesadas e perfumadas.
O meu pai tinha um amigo, também ele comerciante, com uma loja na Furquia, zona de boa laranja e, principalmente, de tangerinas enormes parecendo pequenos sóis espalhados pelo verde das folhas. Eram sumarentas e doces! Nunca mais vi ou comi tangerinas assim.


Um dia, o amigo telefonou-lhe numa aflição incontida.
- Meu amigo, preciso da sua ajuda e com urgência. Veja o que me aconteceu: o meu empregado, o Joaquim, faleceu esta manhã, assim de repente, sem estar doente!
O meu Pai lembrava-se do rapazito na casa dos vinte, muito dedicado ao trabalho e ao patrão. Era o seu braço direito e ficava sozinho tomando conta de tudo, quando o patrão se deslocava a Quelimane a negócios ou mesmo em lazer.
- Ó homem, para morrer basta só estar vivo… Tenho muita pena pelo Joaquim. Mas em que lhe posso ser útil?
- Acredite que é mesmo um grande favor. Já telefonei para Quelimane a dar a notícia à mãe, que vive com uma filha, e não me posso esquecer dos seus gritos lancinantes, de meter dó. Telefonei também ao Regalado para trazer uma urna e vir buscá-lo, mas acontece que ele está ausente para Lourenço Marques e eu tenho a minha carrinha na oficina. Tudo se juntou…
- Realmente é muito azar… - dizia-lhe o meu pai.
- Pois aqui é que entra o meu pedido e peço já desculpa do abuso. Como o amigo tem também uma carrinha queria que me fizesse o favor de o vir buscar e entregá-lo à família.
O meu pai não sabia negar favores destes onde se misturavam sentimentos e solidariedade.
- Vou telefonar para minha casa avisando que chego tarde e vou já para aí com o meu ajudante.
A tarde ia já adiantada quando saíram de Namacata.
Quando não havia mercadoria para transportar, o velho João era companheiro de cabine do meu pai. Era um negro alto, bem constituído, com um olhar bondoso.
- Vamos à Furquia buscar tangerinas? – perguntou ele a certa altura.
- Não – respondeu-lhe o meu pai. - Vamos buscar um morto!
- Xi, patrão, um morto… e vem connosco aqui no carro?
- Claro, já viste algum morto andar?
Quando chegaram à Furquia já era noite cerrada. O amigo andava na estrada com uma lanterna, para trás e para a frente. Quando viu o meu pai suspirou de alívio.
- Já o vesti e embrulhei em lençóis e dois cobertores. Vamos buscá-lo.
O meu pai e o João preparavam a caixa aberta da carrinha. Colocaram o morto entre duas tábuas para ir mais seguro uma vez que atrás havia apenas uma corrente a ligar os dois lados laterais.
- João – disse o meu pai – vais aqui atrás com ele, a tomar conta para que não aconteça nada!
- Xi patrão, ele está morto, não foge.


O João embrulhou-se num grosso cobertor e sentou-se o mais afastado possível da “mercadoria”, junto ao vidro que dava para a cabine. De vez em quando o meu pai batia no vidro e perguntava:
- João, está tudo bem?
- Sim patrão! Ele continua aqui…
Estrada deserta, noite escura de breu, os buracos mal se viam e era cada solavanco que o João gritava lá de trás:
- Poli, poli patrão! Devagar, devagar, patrão.
O meu pai não podia ir mais devagar. Tentava fugir dos grandes buracos e aterrava literalmente nos grandes montículos de areia solta resultado da canícula do dia. Não havia muito por onde escapar. Algum tempo depois deixou de ouvir o João.
- Deve ter adormecido. - pensou o meu pai.
Ao chegar às primeiras luzes da cidade, o João bateu com força no vidro da janela.
- Patrão, pára, pára… o morto fugiu!
- O quê? – travões a fundo e o meu pai sai esbaforido da carrinha.
- Vinhas a dormir João?
- Xi, só um bocadinho!
O meu pai olhou as tábuas que estavam afastadas e calculou que o “volume” se tivesse esgueirado com tantos saltos e caído na estrada.
- E agora? – perguntava um João muito aflito.
- Agora vamos voltar atrás a buscar o Joaquim e Deus queira que nenhum camião o tenha atropelado.
- Não faz mal patrão ele já estava morto…
- E se algum leão ou outra bicheza o atacou?
O João encolheu-se no fundo da cabine.
Na zona de maiores buracos e de areia lá estava o “embrulho” conforme tinha caído da carrinha.
O João saiu logo a correr e gritava para o meu pai:
- Tem calma patrão, ele está mesmo descansado!


quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Soneto

Soneto


Se procuro cantar-te nas estrelas
É porque tenho sede do infinito.
Se quero que as tristezas sejam belas
É porque, assim, o mundo é mais bonito.

Procuro não ter pesos no olhar
Nem pôr pregos nas asas da loucura.
Sem saber se o desejo de te amar
É destino, ilusão ou sepultura.

Até que a noite apague o entardecer
E o silêncio dilua o meu cansaço,
Procuro o amanhecer do teu olhar.

E descanso a angústia de saber
Que no carinho longo de um abraço
Se adia o dever de recordar.


José de Almeida
In “Palavras de Outono”


Quadro de Malangatana, pintor moçambicano falecido a 5 de janeiro de 2011 em Matosinhos.