quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Schwarzenegger do Chuabo

As palavras e as recordações são como as cerejas que hoje comi ao jantar: vêm umas atrás das outras. E é de noite que a ave da lembrança vem fazer ninho no meu coração e me leva com as suas asas, no meio deste silêncio, a outras paragens. Não quero deformar imagens, acontecimentos e tantos episódios que aqui relato. Tento ser fiel e, para isso, subo ao terraço da minha alma e olho o infinito à procura, talvez, de mim própria. E espero. Noites longas, tantas… E com o vento suave da memória chegam as peças do cenário que eu levanto como se fosse um baralho de cartas.
Tínhamos ido, o grupo habitual, aos arredores de Coalane distribuir as senhas para as refeições da semana, pão e alguma roupa aos carenciados que estavam a nosso cargo. Eu era a única que tinha carro, bem pequenino por sinal: um Fiat 500, vermelhinho como as ditas cerejas. Nessa altura, havia um agente da polícia de viação que andava numa moto potente que era o Schwarzenegger lá do sítio. Quase dois metros de altura, largura de um bloco de cimento e um rosto patibular. Todos tinham receio porque o senhor não se fazia rogado para passar multas aos mais incautos e desprevenidos. Diziam que por detrás daquela máscara não havia um coração. Junto à estação de serviço que ficava do lado direito quando se entrava na cidade (uma das últimas a ser construída) o agente mandou-me parar. Ali perto existiam meia dúzia de palmeiras que os corvos, não sei porquê, utilizavam como ninhos. Grasnavam todo o dia que era uma perdição. Ora nesse momento o coro silenciou-se, talvez atento ao que se iria passar.
- Encoste aí o carro menina e mostre-me os seus documentos.
Fazíamos companhia aos corvos num silêncio de morte. Abriu-me a porta do carro e mandou-me sair. Como o gigante olhando Golias perguntou-me secamente:
- Conhece a lotação da sua viatura?
- Claro, senhor Guarda, são 2 lugares!
- Ah, então não é por ignorância!
Afoitamente respondi-lhe:
- Não, não, é por necessidade.
As minhas amigas quase sumiam por debaixo dos pequenos bancos. Rodopiou os calcanhares e direito que nem um fuso dirigiu-se ao outro lado; abrindo também a porta executou o mesmo cerimonial:
- Façam o favor de sair uma a uma.
Era escusado dizê-lo, ali entrava-se de calçadeira e saía-se de saca-rolhas. Como quem conta limões qual vendedor do mercado que até ficava ali perto, começou:
- Uma, duas, três, quatro, cinco e seis.
E voltando-se para mim perguntou ainda mais exaltado:
- Que me diz a isto menina?
- Que somos elegantes. - respondi prontamente.
Alguém abafou uma gargalhada.
- Lamento mas vou passar-lhe uma multa!
E punha o livro das famigeradas multas em cimo do capot do meu “Boguinhas”.
- Como entender senhor guarda, na certeza porém que amanhã voltaremos a fazer o mesmo, a não ser que o senhor faça a amabilidade de nos ajudar com a sua mota a levar material para sete famílias a quem damos assistência. A Luísa dizia atrás de mim:
- Vais ser presa!
Tal como o primeiro sucesso não significa vitória, também o primeiro fracasso não significa derrota. A serenidade é a força dos fortes e a iniciativa faz parte do discernimento. Ele fechou o bloco devagar e indagou mais suavemente:
- Vocês fazem parte de algum grupo ou movimento?
Voltou o coro dos corvos. Bem ensaiadinhas numa só voz:
- Somos do Centro Juvenil de Quelimane!
- Mas então a Igreja ou o Padre não vos faculta um transporte? - Rimo-nos!
- Conhece o Padre Bernardino, aquele que calcorreia a cidade numa velha bicicleta? Pois é esse o responsável pelo Movimento. Está a ver sete moças em cima daquela bicicleta?
Finalmente humanizava-se:
- Claro que não e o que fazem é muito meritório…
Ficou algum tempo calado; depois lá terá pensado que estava a perder autoridade às mãos de umas miúdas e recuou na sua fraternidade:
- Vamos fazer assim, a menina leva agora três das suas amigas e depois vem buscar as outras três. Eu fico aqui com elas.
Não nos podíamos queixar… pelo menos o iceberg mostrara ter um pouco de coração e não nos penalizara. Tínhamos tido sorte! Quando regressei para levar as outras três, recomendou ainda:
- Façam por não se encontrarem comigo…
Ao que eu lhe respondi:
- Faça o senhor também por não nos ver, o que será fácil, o meu carro é o único Fiat vermelhinho que existe na cidade!
Riu-se:
- Já tinha notado!
E lá foi o Schwarzenegger à procura não de uma mas de duas multas, para compensar o momento em que fraquejou.
Nós ficamos a pensar que o Guarda não era tão mau como se constava; afinal, quem vê caras não vê corações, mesmo os que, a princípio, parecem nem existir!

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Terceiro Aniversário do "Zambeziana"


As recordações fizeram e fazem este blogue quase na sua totalidade. Bonita é a gratidão à terra que me viu nascer, bonita é a memória que tenho dos meus pais, bonita é a partilha do quotidiano vivido noutro tempo e noutro espaço, bonita é a luz que nasce quando o passado se faz presente, bonita é a “casa” habitada por tantas vozes, bonito é o amor do meu filho que me dá força para escalar a montanha, bonito é descobrir em mim, com espanto, tanto amor à vida, bonito é escrever jogando com as palavras, edificando o texto que depois aninho no meu colo, bonita é a amizade, as marés da memória, o reconhecer os amigos através de tantas coisas. Bonita é a mensagem que chega de longe só para dizer: “Estou contigo”!

Estes selos são presentes da minha amiga Sonia Silvino. Um beijo especial para ela.

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Os selos, são para os amigos levarem, esses amigos que fazem deste espaço ainda mais BONITO e que, sem os mesmos, não haveria alegria nas coisas BONITAS que a vida tem!

Uma surpresa que me deixou emocionada, obrigada querida Ana.


Obrigada pela prendinha querida Ná. Um beijinho grande.



O meu coração neste abraço.


terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

As Memórias do Amor

First kiss


As memórias que o amor guarda mais são aquelas que foram envolvidas no papel fino da ternura! Uma flor do campo que se apanhou de propósito para nos ser oferecida... Um abraço mais apertado, sem legenda... Os doces de fim de semana comprados numa das melhores pastelarias da cidade, talvez com um sorriso a lembrar a gulodice de quem os espera... Uma chávena de chá levada à cama quando se tem uma forte enxaqueca... um telefonema surpresa feito na hora difícil de decidir algo profissionalmente... Uma fogueira na lareira bem quentinha e doirada à espera de quem vem do frio... Aquela carta, já amarelecida pelo tempo, guardada e dobrada com todo o cuidado para não deixar escapar as palavras... aquele sorriso de cumplicidade com direito a covinhas, a recordar a emoção de um momento... dois braços sempre abertos para acolher tanto desabafo, incertezas e angústias... A primeira fruta que se apanhou da árvore plantada com amor e oferecida com primazias risonhas... A certeza de um porto de abrigo em dia de tempestade e de ventos agrestes... Um convite inesperado para um passeio no momento exacto em que a tristeza bateu à porta... As palavras de encorajamento quando o mundo parecia ruir... e a ternura de um amor quase perfeito!


terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Está Morto!


O estrondo ecoou pela rua toda e pelas circundantes. O homem entrou a uma velocidade louca pelo muro da quinta pensando que seria a continuação da estrada.
Quem passava a pé, à procura de algum fresco depois de um dia demasiado quente e abafado, estancou e disse:
-Nem a alma se aproveita! Está morto!
-Está de certeza – afirmou outro.
Dois ou três carros pararam em fila indiana e foram espreitar. O homem todo ensanguentado estava com o rosto deitado sobre o volante, com os olhos semicerrados.
-Não há nada a fazer… - disseram.
-Pois não, mas temos de chamar a polícia – disse outro.
Numa cidade ronceira, extremamente calma onde quase nada acontecia, a polícia tardou em chegar. A autoridade tirou um cigarro do maço, acendeu-o e deitou uma baforada.
Chegou junto da janela do carro sinistrado, olhou atentamente e afirmou:
- Não há dúvida, ele morreu.


Chamou dois homens negros que passavam e pediu-lhes:
-Tirem o morto daqui, dispam -no e levem -no para a morgue que eu vou do outro lado, ao hospital, chamar o médico e pedir que abram a casa mortuária.
Os negros obedeceram. Quando chegaram à morgue a porta já esta estava aberta. Colocaram o morto já sem roupa em cima da eça mais fria que a própria morte.
O médico chegou, pôs dois dedos nas carótidas e confirmou:
-Está morto, vou passar-lhe o óbito.
Entretanto chamou um servente negro e recomendou-lhe:
-Você fica aqui a tomar conta dele.
O servente arregalou os olhos e perguntou:
-Está morto?
- Claro – respondeu o médico.
O servente abriu mais as portas da morgue a ver se entrava algum ar fresco naquela noite maluca. Um lampião da rua com luz muito frouxa deitava um raiozinho para dentro do cubículo e assim o servente podia vigiar melhor o morto.
O calor aumentava e produzia-lhe uma terrível sonolência. Esticou-se no banco de pedra e com um olho fechado e outro aberto como o camaleão, olhava o morto. Não resistiu e acabou por adormecer. A altas horas da madrugada acordou com uns gemidos. Sentou-se rápido no banco e esfregou os olhos. Os gemidos continuavam. Aproximou-se devagarinho da eça e pôs o ouvido no peito do morto. Este abriu os olhos e perguntou:
- Aonde estou?
-Na morgue, patrão.
De um salto sentou-se e reparou que estava nu. Deitou uma perna para fora da eça mas o servente empurrou enérgico:
-Deita patrão, tu estás morto. O doutor vai ralhar comigo.
-Qual morto, qual carapuça, estou vivo! - e desata a correr pela rua mal iluminada.
O servente na sua peugada, gritava:
- Por favor, patrão, volta outra vez, tu estás morto.


O homem chegou à porta da sua casa e tocou a campainha. A mulher ainda não se havia deitado preocupada com a demora do marido. Abriu lesta a porta e viu o marido todo ensanguentado, nu e uma cara negra pendurada no seu ombro que gritava:
- Patrão morreu.
A mulher caiu redonda no chão.

História contada pelo meu pai.