terça-feira, 8 de julho de 2014

Ana


(Continuação de Sempre o Amor)


Ana olhava a foto do pai com ternura e interrogação. Parecia-lhe que aqueles olhos verdes, que herdara, lhe faziam perguntas. Suspirou.
Seria que o pai, que sempre a tinha compreendido, gostaria do Ricardo? Ainda nada dissera à família. Encerrara-se no seu casulo inquieta com medo das apreciações mas também respeitando a memória do pai, sempre venerado em casa apesar de já terem decorrido seis anos sobre a sua morte. Sofrera muito com a partida do seu papi. Afinal, era a sua menina bonita, a preferida para fúria de Alex que, como caçula, entendia que tudo lhe era devido.
Claro que o pai adorava o filho mas este era mais novo cinco anos que a irmã e havia temas que ainda não podia conversar com ele.
Quando Ana devorava livros atrás de livros, o pai dizia-lhe:
- São uma droga, não é? Não conseguimos livrar-nos deles. - E ria feliz porque o seu gosto literário coincidia com o da filha.
Às vezes andavam à disputa sobre uma obra que ambos queriam ler ao mesmo tempo. Outras vezes cada um escolhia o seu livro, depois trocavam e, finalmente, havia o debate num serão de família em que Marta também entrava; fazia igualmente parte do grupo “dos ratos de biblioteca” como afirmava o Alex que assistia a estes serões um pouco enfastiado sem compreender como é que uma pessoa pode gostar tanto de ler… “Que seca!” Por vezes intervinha como árbitro e as suas opiniões não eram assim tão descabidas… Estaria para nascer outro “rato”?




Ana sorriu pousando a foto sobre a secretária. Sentou-se na cadeira de executiva, como dizia o irmão, e chamou a si todas as recordações.
Lembrava-se de Alex, já meio adormecido naquela peleja intelectual, levantar-se e dizer solenemente: 
- Vamos ao concreto meninos!
Todos riam porque já sabiam o que era o concreto de Alex. Meia hora depois de se ter retirado de cena aparecia na sala de avental posto com um grande tabuleiro onde havia de tudo… Era o fim do teatro ou o princípio… Com gestos teatrais virava-se para a mãe e perguntava:
- Madame o que deseja? Está tudo a seu gosto?”
E passava-lhe pequenas tapas barradas com uma mistela que ele reinventava constantemente mas todos concordavam ser muito boa. De seguida surgia um prato de scones aquecidos no micro ondas. “João Ratão” era perito em encontrar restos comestíveis.
- E a senhorinha, que vai tomar? Devo recordar-lhe o cuidado com a sua linha… Mais um pouco de bolo e adeus cinturinha de vespa…
Ana fingia que se zangava com ele.
- Senhor arquiteto, – Virava-se agora para o pai. – sei das suas preferências e aqui está um uísque bem geladinho e um café quentinho acabado de sair… Nunca entenderei estas oposições…
E inclinando-se fazia uma graciosa vénia. O pai achava-lhe imensa graça e rematava sempre:
- Ainda hás-de ir para o teatro.
A mãe puxava a si aquele filho querido e enchia-o de beijos. Como eram felizes… Havia amor verdadeiro e muita ternura.


Seria assim com Ricardo quando constituíssem família? De novo aquela pontada de angústia a apertar-lhe o coração. Ricardo vinha de uma outra relação, de um casamento falhado… Às vezes era irónico e demasiado amargo para o seu gosto, ela que tinha uma alma alegre e transparente.
Como iria a sua família, tradicional, católica praticante, de rigorosos princípios, aceitar um namoro assim? Iria rebentar uma guerra? E o pior é que não tinha a certeza, bem no fundo da sua alma, se estava no caminho certo. Evidentemente que gostava do Ricardo. Era um homem persuasivo, mais velho do que ela quase dez anos, e que fora seu professor na Faculdade.
Chegou de mansinho à sua vida, no momento em que estava toda partida pela dor e com a vida feita num nó. Aceitara a sua companhia porque sentia falta de uma presença masculina que substituísse a do pai, como se isso fosse possível.
- A Ana tem de reagir a esse desgosto. É uma mulher inteligente e sabe que o seu pai depositava grandes esperanças em si. Não gostaria, por certo, de a ver derrotada. - Dizia-lhe Ricardo quase todos os dias. - Quando não puder ir às aulas faculto-lhe apontamentos para a ajudar.
Sem saber como, dois anos depois, estava de namoro com Ricardo.
As colegas comentavam e chegaram a dizer-lhe que ele não era homem para ela.
- Não sei porquê! É um homem educado, com posição, charmoso… Não sei porque não me agradaria.
- Só isso não basta. – Retorquiam as amigas. - É preciso carácter e isto não aconteceria se o teu pai fosse vivo. – Fora a frase que mais lhe ficara no ouvido dita por Daniel.




Mas havia que lhe dar um desconto, Daniel gostava dela desde o secundário. Era habitual lá em casa, filho de amigos dos pais, que se visitavam amiudadas vezes.
O pai chegou a dizer-lhe:
- Ana, ainda te hei-de ver casada com o Daniel e olha que o rapaz tem toda a minha bênção.
- Ó pai, somos só bons amigos e colegas. Já te esqueceste que fomos criados quase juntos? Vejo no Daniel apenas um irmão.
- Os bons e duradouros casamentos assentam muitas vezes nas boas amizades.
De certeza que Daniel intervira um pouco por despeito. Contudo, Ana continuava a ter apreço por ele e sentia-se bem na sua companhia.
O telefone tocou tirando-a de toda abstração e conjeturas…
- Está, Ana? Sou eu o Daniel!
- Sim, eu sei, ainda conheço a tua voz. Estava a pensar em ti…
- Sim? Bem ou mal? - Perguntou ansioso.
- Sabes que nunca penso mal de ti. Tu és para mim muito querido, como um irmão.
Do outro lado houve um silêncio e um suspiro prolongado…
- É pena, mas isso agora também não interessa. Telefono-te para me despedir, parto hoje para Itália.
- E ias-te embora e não me dizias nada? Que é feito do amigo que sabia tudo sobre mim e eu sobre ele? - Perguntou Ana com alguma tristeza.
- Sabes, crescemos, temos de tomar opções na vida, muitas vezes diferentes daquelas que gostaríamos e os caminhos começam a ser paralelos, senão opostos. Mas é evidente que a nossa amizade será sempre a nossa Amizade, com letra maiúscula.
- Sim e ias-te embora sem quase me dizer nada. Fui apanhada de surpresa… Mas porquê essa decisão?
- Compreende, o convite que tive não o recebi há muito tempo. Tive ainda de amadurecer a ideia, estudar os prós e os contras e ecco, lá vou até Itália. Vou trabalhar num conceituado gabinete de arquitetos, o vencimento e regalias são ótimos…
- E as mulheres bonitas… – Atalhou Ana um pouco enciumada.
- Por enquanto esse capítulo está encerrado. Não sou homem para enganar uma mulher gostando eu de outra.
Ana acusou a direta e mudou de conversa.
- Então não vais lá a casa despedir-te da família?
- Já o fiz pelo telefone. Falei com a tua mãe que ficou espantada com esta decisão e com muita pena de não me ver mais por lá a pedir à Maria que fizesse scones para o lanche… O Alex… bem, esse insultou-me e perguntou-me com quem iria agora jogar ténis. – Riu-se, um pouco nervoso. - Sei que todos vocês gostam de mim, isso não duvido.
- Era o que faltava Daniel. Diz-me a que horas parte o teu avião. Vou ao aeroporto dar-te um abraço.
- Não, não. É melhor assim, acredita. Até para os dois. Só te peço uma coisa: pensa muito a sério no que vais fazer em relação ao Ricardo. Se precisares de mim, seja para o que for, é só ligares para o meu telemóvel e eu ponho-me em Portugal no primeiro avião.
Ana sentiu lágrimas nos olhos e no coração. Com voz sumida, respondeu-lhe:
- Eu sei Daniel, eu sei. Faz boa viagem e que Deus te ajude em tudo porque tu mereces. Um beijo.
E desligou apressadamente para não aumentar aquela onda de angústia que começava a inundá-la.



Não, não conseguiria trabalhar mais nesse dia. Deixou pedidos e informações sobre a sua mesa de trabalho e disse à secretária que se ia embora porque não se estava a sentir bem.
O vento na rua refrescou-a um pouco. Iria de novo ter outra perda na vida? Começava a ser demais…
Chegou a casa agitada.
- A minha mãe? – Perguntou à Maria que a olhou espantada com tanta brusquidão.
- A senhora está no jardim. – Respondeu-lhe o mais calmamente que pode.
Correu como quando era criança até ao refúgio da mãe, à procura de paz e de carinho.
- Oh, mãe, o Daniel vai-se embora! – E chorou no seu ombro.
- Eu sei minha querida… e dói? - Perguntou a mãe observando-lhe o rosto cheio de lágrimas.
Ana abanou a cabeça afirmativamente.
Marta, afagando os cabelos da filha, disse-lhe ao ouvido:
- Então pensa porque dói tanto….


(Continua)