quinta-feira, 27 de março de 2014

Pergunta-me



Pergunta-me
Se ainda és o meu fogo
Se acendes ainda
O minuto de cinza
Se despertas
A ave magoada
Que se queda
Na árvore do meu sangue

Pergunta-me
Se o vento não traz nada
Se o vento tudo arrasta
Se na quietude do lago
Repousaram a fúria
E o tropel de mil cavalos



Pergunta-me
Se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
Junto das pontes enevoadas
E se eras tu
Quem eu via
Na infinita dispersão do meu ser
Se eras tu
Que reunias pedaços do meu poema
Reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
Pergunta-me qualquer coisa
Uma tolice
Um mistério indecifrável
Simplesmente
Para que eu saiba
Que queres ainda saber
Para que mesmo sem te responder
Saibas o que te quero dizer

- Mia Couto in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"

terça-feira, 11 de março de 2014

Encontro de Átomos


Inês guardou na sua pasta os exames médicos que a doutora Cecília lhe entregara.
- Obrigada por tudo doutora.
- Tudo? Mas eu não fiz nada porque a Inês não permite. É uma pessoa invulgarmente dinamizada eu diria até, desassossegada. Sofre da doença do “mais”…
- Não brinque doutora Cecília… O jornal precisa de mim para esta grande reportagem e já há diversas conferências marcadas com pessoas de todo o mundo que estão envolvidas neste trabalho social. Vão comigo mais dois elementos do jornal e a viagem é para daqui a dois dias.
- E se em vez de um tumor benigno fosse maligno, Inês? Não teria a capacidade de parar, ouvir o que os médicos lhe dizem, escutar a própria vida?
- Não sei… Com certeza que na Índia também há hospitais bons que me possam ajudar se a situação se alterar…
- Penso que sim mas, não é a mesma coisa. Aqui está em casa em todos os aspetos e o apoio da família e amigos é muito importante.
- Espero regressar a tempo de resolver a situação. Depois de ter cumprido a minha obrigação profissional…
- Diga antes, o seu sonho…

Inês sorriu e o seu olhar já estava longe dali e de si própria. Meteu-se no carro pronta a ir fazer as malas para evitar aquele desconforto de já não se sentir em lado nenhum…
Os pais já não se surpreendiam com estas viagens que Inês fazia a cada passo em serviço. Mas agora para a Índia… tão longe, o coração ficava apertado, sem dúvida.
Inês sossegava-os:
- O tempo passa depressa e prometo que todos os dias falo convosco.
Inês gostava da sua profissão que, em cada ano, lhe oferecia uma aventura feita de rostos, de histórias, de muitas palavras a correr como um rio, compêndios, apontamentos e fotocópias.
Por diversas vezes já fora premiada por reportagens que fizera quer para o jornal, quer para a televisão.
Já no avião, Inês não largava o seu computador. Os colegas riam-se dela:
- Aproveita para dormir umas horinhas, a viagem é muito longa.
- Não consigo dormir no avião. Aproveitem vocês, estou já a trabalhar na minha reportagem.
Contudo, Inês passou algumas horas pelo sono…

Túmulo do imperador mughal Humayun, construído em 1570, serviu de inspiração para o Taj Mahal. New Delhi, Índia

Quando chegaram a Nova Deli, capital da Índia, a cidade foi uma surpresa agradável para os três, bem como o luxuoso hotel onde ficaram hospedados.
Avisados que depois do jantar haveria a conferência de apresentação, apressaram-se a tomar um duche para espantar cansaços e vestirem-se adequadamente.
Ao jantar, numa mesa de dez pessoas tornada em Nações Unidas: ouvia-se falar em espanhol, italiano, inglês, francês e, claro, em português.
A seu lado, sentou-se um italiano, também ele jornalista, que desportivamente se apresentou:
- Ciao, me chiamo Giovanni, de Riomaggiore… Scusi, o meu portuguese non è muito buono. È una língua molto difficile…
Perante aquela algaraviada proferida de forma tão desajeitada e simpática, Inês nem exitou e disse sorridente em bom italiano:
- Não há problema, eu falo italiano!
O alívio do seu interlocutor não se fez esperar.
- Meu Deus, mas isso são ótimas notícias! – E a partir daí a conversa entre os dois seguiu na língua mãe do jornalista italiano.
É claro que, entre todos os que sentavam naquela mesa, surgiram as inevitáveis dificuldades de comunicação, mas nada que um sorriso e umas palmadinhas nas costas não resolvessem.
Todos tinham a consciência que era um privilégio estarem ali, convidados expressamente para um mês de trabalho em várias províncias da Índia.

No dia seguinte, vários autocarros levaram jornalistas e conferencistas a fazer uma breve visita à capital da Índia. Giovanni, que já conhecia o país, sentado ao lado de Inês, era o seu guia pessoal. Diante dos olhos de Inês surgia o limite entre a realidade a bater-se vencedora com a ficção e os pés de barro dos quais ia dando conta em vários pontos deste circuito, preparado para encantar. Mas a tradição pesa e oferece imagens, por vezes, nada agradáveis.
Giovanni dizia-lhe:
- Quem vem à Índia, nunca mais regressa igual. E é verdade!
- Foi o que te aconteceu?
- Sim, adorei o povo, as suas tradições tão marcantes, a sua história e cultura religiosa tão pouco conhecidas dos ocidentais. A Índia ou se gosta e ama-se de vez ou se rejeita e tem-se a vontade de pegar o primeiro avião para voltar para casa.

Inês sentia-se dentro de um filme, daqueles filmes indianos que ela sempre detestara. Pensava que a sua vontade talvez fosse a segunda hipótese. No entanto, nunca fora de desistir e entendia perfeitamente que o bem e o mal convivem amiudadas vezes paredes meias, assim como o amor e ódio, o lar e a selva.
Giovanni falou-lhe de Mahattma Gandhi, esse homem extraordinário que amou o seu povo precisamente porque reconhecia que eram presas fáceis para a morte que os rondava sempre. Pessoas fustigadas sem piedade por toda a espécie de pobreza, aceitando essa vida miserável como um destino. 

Rio Ganges em Varabasi, Uttar Pradesh, Índia
- Tenho um projeto, talvez como Gandhi… Quero ajudar este povo na medida das minhas possibilidades. Em Uttar Pradesh colaboro num empreendimento que está a erguer uma aldeia sociocomunitária auto-suficiente, que, aos poucos, está a transformara vida de um pequeno canto daquela província tão pobre…
- Uttar Pradesh? Mas é aí que vamos fazer a nossa reportagem! - Inês ficara curiosa com o projeto de que Giovanni lhe falara. A ideia de poder testemunhá-lo em primeira mão deixou-a radiante.
“Nenhum homem é uma ilha; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra”. Uma citação muito bonita mas que, às vezes, não tem significado.

Universidade La Martiniere, Lucknow, Índia (c) Ahmad Faiz Mustafa
Inês estava cada vez mais ansiosa para ver a obra de que tanto ouviu falar naqueles dias. As horas voavam em antecipação do momento de chegada à província de Uttar Pradesh. A viagem passou por um voo entra Nova Deli e Lucknow, a cidade dourada da Índia e capital da província. Depois seguiu-se uma longa viagem por estrada, para norte, em veículos ao serviço do empreendimento com que Giovanni colaborava. A localidade mais próxima era Nighasan, não muito longe da fronteira com o Nepal.
O aldeamento, esta palavra fazia todo o sentido, fora construído de raiz. Inês e os seus colegas ficaram espantados com aquela “pequena cidade”. De facto, a única palavra que liberta toda a espécie de prisão, é o amor. E ali notava-se, para além de muito trabalho, o amor e a dedicação.

Giovanni e os imensos amigos convidados a oferecerem um ano ou dois de trabalho comunitário em Uttar Pradesh, tinham sido fantásticos, quase operando um milagre.
Não faltava um pequeno hospital, bem apetrechado, um infantário, um lar de idosos, duas escolas para além de habitações sociais destinadas às famílias pobres, que naquela zona eram quase todas...
Inês desdobrava-se em visitas e entrevistas à população local, quando necessário com a tradução de Giovanni já razoavelmente fluente em hindi.
- Estou a adorar fazer esta reportagem e de ter a oportunidade de dar a conhecer ao mundo a obra que está aqui a ser feita.
- Não precisamos de aplausos, apenas de muita ajuda e amor. - Riu-se Giovanni.

Os dias foram correndo céleres e Inês constatava que já amava aquela obra e gostava de estar ali. Percebia também, na sua sinceridade interior, que havia outros laços que iam crescendo igualmente. E no silêncio dos corações um sentimento muito seguro foi cimentando-se na reciprocidade. Há coisas que não se podem esconder, tal é a sua intensidade.
Os outros sorriam e compreendiam.
Um dia Giovanni sentiu-se mal. Ficou muito pálido, parecia a imagem da morte. Chamaram o médico que habitualmente o assistia.
- É tempo de voltares outra vez a Itália. Há tratamentos que não podem parar.
A situação desnudava-se perante Inês confrontada com a perceção inegável de que algo de grave se passava.
A reportagem estava pronta e os colegas partiriam dentro de dias. Mas os planos de Inês eram outros, estava determinada em seguir com Giovanni para Itália. Todo o seu material tinha sido enviado para a sua redação e as imagens recolhidas seguiam com o cameraman que havia acompanhado o grupo para serem editadas em Portugal.


- Não quero que alteres os teus planos por minha causa. - Murmurava-lhe Giovanni.
- O meu dever profissional está cumprido e agora há outro que se impõe. Se tens de lutar contra alguma coisa eu serei tua aliada! - Afirmou Inês decidida.
Na viagem de avião até Roma houve espaço e tempo para abrirem os seus corações.
- Padeço de leucemia há algum tempo mas o desânimo nunca me afetou. Continuei com a mesma determinação no trabalho do aldeamento a que eu chamo de “Mio Amore”.
Inês brincou:
- Ah, pensava que era eu o teu amor. Riram-se os dois.
Após um momento partilhado, a expressão de Inês tornou-se séria e afastando docemente os braços confessou num murmúrio:
- Tenho dificuldade em encontrar as palavras certas sem te causar mais preocupações. Na véspera de embarcar para a Índia, a minha médica entregou-me os resultados de exames que fizera e o vaticínio era cancro da mama, embora o tumor fosse benigno. Comprometi-me com ela, no meu regresso a Portugal, a fazer o devido tratamento.
Giovanni e Inês abraçaram-se num gesto onde para além do amor, havia cumplicidade, intimidade e partilha.
- Havemos de vencer! – Disse Giovanni.
Ao chegarem a Roma, Giovanni foi internado no seu hospital para fazer vários exames. Antes ainda confiou Inês aos cuidados dos pais transmitindo-lhes o carinho que tinha por ela que um pai e uma mãe tão bem sabem reconhecer. Nascia um vínculo que unia aqueles seres marcados pela doença e pelas preocupações mas também por um sonho grandioso de fazer muita gente feliz.
O avançar dos dias parecia trazer mais calma a Giovanni e a Inês mais impaciência.
Inês passava todo o tempo possível com o seu amore no quarto de hospital onde continuava internado. Num desses dias, receberam a visita de uma médica que Giovanni apresentou de imediato.

Cupido e Psyche, por Antonio Canova (c. 1797) - Palazzo Marini, Milão.

- Minha querida, esta médica, uma grande amiga minha, é especialista na área do teu problema e gostava de te fazer um exame mais cuidado. Porquê esperar o teu regresso a Portugal? Já que estamos os dois aqui façamos uma revisão aos nossos casos.
Inês aceitou pensando que no último mês, a caminho do segundo, tinha tido uma vida sem repouso, numa vertigem constante de alta velocidade e fortes sensações.
Era preciso parar como dizia a doutora Cecília.
Nos dias seguintes os casos clínicos de Giovanni e Inês foram tema de conversa em vários núcleos hospitalares do país. Os médicos conferenciavam, discutiam opiniões com outros especialistas, e ofereciam possíveis soluções. O cancro de Giovanni e o tumor de Inês haviam regredido. No caso de Inês o tumor havia desaparecido por completo. No de Giovanni as melhorias eram inusitadas e inesperadas, aproximando a cura total.
Os clínicos questionavam qual seria a explicação. No caso de Inês era fácil entender o que se passara, afinal, por vezes, os tumores benignos regridem. Mas a leucemia de Giovanni era um cancro declarado! Não era muito clara a sua cura… Iria certamente ser motivo de vários estudos futuros.
Aos dois apaixonados pouco interessavam as explicações oferecidas pelos médicos, marcadas mais pelas dúvidas do que pelas certezas. Inês, abraçada a Giovanni, dizia-lhe:
- De tão longe vim aos teus braços abertos.
- Posso afirmar o mesmo, meu amor. Os médicos não entendem o que se passou mas eu sei: os nossos átomos deixaram de ter preocupações e uma espada sobre a sua existência. Ficaram cheios de projetos, de sonhos e, finalmente, de amor! Deixamos de pensar em nós para pensar nos outros. Deixou de haver espaço para a doença… Entre os nossos átomos houve uma secreta biogénese, essa coisa estranha a que se chama comunhão de corações.


- Foi apenas o Amor que nos salvou.