terça-feira, 26 de outubro de 2010

Inéditos



A maior parte das pessoas conhece Antoine de Saint-Exupéry através da sua obra “Le Petit Prince”, contudo ele escreveu vários outros textos entre 1925 e 1943: a sua primeira narrativa “Manon, Dançando”, prelecções, memórias de infância e da aviação, cartas diversas (a Louise de Vilmorin e a Natalie Paley), fragmentos de “Correio do Sul” e de “Voo Nocturno”.
Todos eles permeados por uma meditação sobre o que pode conferir sentido à viagem e nos ligar ao lugar de onde vimos, estes textos ajudam-nos a aproximar-nos da sensibilidade, das dúvidas morais e da obra de Antoine de Saint-Exupéry.


(Extracto de “Manon, Dançando”)
Porque nos põem tristes as pessoas demasiado novas? Não podemos amá-las, claro, ou quase não podemos, como um irmão mais pequeno: um jovem ainda não é nada…
- Manon… é a primeira vez.
- Meu homenzinho!
Os muito novos deslumbram-se sempre, abraçam-te, agradecem-te. Pensam que também eles dão muito prazer: deixamo-los acreditar nisso. Têm um mau jeito de jovens bichos, ensinamo-los:
- Uma mulher é frágil, é preciso ser doce…
Mais tarde, hão-de levar-te as carícias para as amantes a que quiserem bem.
- Estás triste, Manon?
Ela não tem margem.
Ele espanta-se com aquela nudez tranquilizante, apaziguadora, pois, a descer, desde o pescoço aos seios, até às ancas, é a mesma carne, a mesma pele, que vem do rosto.
- És encantadora…
Ele usa a palavra mais doce, a mais requintada. Sente-se expurgado das suas imagens perturbadoras de colegial: aquela mulher nua faz parte da sua própria carne. “ Ele acha que eu sou tão nova como ele…”
Manon dilui-se contra a cova do seu ombro. Caminham os dois na vida à mesma altura, mas por um tão curto espaço de tempo. Amanhã, ele há-de ultrapassá-la.
“Eu sou uma coisinha que se agarra. Uma franguinha num bar…”
Talvez ela abrace um irmão sem sequer o reconhecer, sem encontrar o sinal que lho dê a entender.
Ele fecha os olhos.
O seu rosto é um punho fechado, a vontade manifesta-se, repentina, na dobra dos lábios. Uma sombra nas faces: todo o desconhecido do homem, aí jaz.
“Meu homenzinho… porque ainda és nada, meu homenzinho, para além de uma carne protegida, toda tenrinha. Mas esta noite sentiste-te um conquistador e o teu rosto fecha-se como um punho. Tu és um homem.”
Manon…
- Descansa. Tem juízo. Tens a vida toda…


segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Os Volframistas



(História que me foi contada pelo meu Pai)

No tempo do volfrâmio muita gente enriqueceu dando origem a uma grande onda de novos-ricos. O que lhes sobrava em dinheiro faltava-lhes em princípios e boa educação!
Na aldeia, alguns filhos da terra, que até tinham casas de negócios em Lisboa, voltaram para o burgo natal com os bolsos cheios de notas e ansiosos de ganharem a notoriedade que nunca tiveram. Compravam-se e restauravam-se velhos palácios e casas solarengas. Vinham os melhores mestres da arte do Porto para um restauro rico, de portas douradas e paredes pintadas a “fresco”. A mobília, então, causava um pasmo geral, nunca ninguém vira tanta riqueza junta, nem mesmo na casa do doutor e professor da aldeia consideradas pessoas de cultura e bom gosto. A completar todo este palco de vaidades, surgiam os bons tapetes, as tapeçarias murais e quadros de pintores célebres.


Toda esta movimentação era feita com o maior alarido porque era importante causar o impacto da admiração e até… de alguma inveja!
Falava-se em comprar títulos falidos e, de imediato, o Brasão era esculpido no grande portão de ferro e os documentos da compra guardados religiosamente no cofre-forte da casa.
A mulher do Joaquim habituada a cozer as batatas na velha panela da lareira, achava que o marido estava a exceder-se um pouco…
- Maria, que é que eles são mais do que nós? Só porque têm um canudo? E nós temos dinheiro que falta a muitos…
Depressa Maria se deixou deslumbrar com o estatuto de rica. Quando passeava no luxuoso automóvel conduzido por um motorista fardado como mandavam as regras, abria o vidro da janela ainda que estivesse frio e toda se empertigava para que o povo pudesse apreciar a sua toilette. O Joaquim, esse, montava bons cavalos e calcorreava as quintas que comprara, pensando como trabalhara nelas como um mouro.
Joaquim decidiu contratar a devida criadagem para que executassem o trabalho necessário para manter o palácio num brinquinho. Quantos mais melhor!
Tornaram-se presumidos, cheiravam a dinheiro e faziam gestos pedantes. Apesar do luxo e da posse sentia-se neles a raça de pobres, acanhamento de inferiores, bazófia de novos-ricos.
E de pretensões, nem se fala!
Um dia Joaquim chegou ao seu palácio a encontrou a sua Maria perdida de choro e de raiva.
- Então o que tens mulher, o que te falta? Sarna para te coçar é o que é!
- Joaquim, vê lá que na casa do Doutor se realizou um grande chá e nem se dignaram a convidar-nos… Sim, a nós que somos os mais ricos da aldeia e arredores.
- É por isso mulher que estás abatida? Já vais ver. - Tocando a sineta, logo surgiu uma criada para atender o seu novo patrão.
Dando-lhe uma nota gorda, disse-lhe:
- Vai lá abaixo à mercearia e compra dois quilos de chá!
A criada esbugalhou os olhos e perguntou, pensando que tinha ouvido mal:
- Dois quilos? Mas isso é muito…
- Que tens tu a ver com isso? Sou rico e posso comprar o chá que quiser…
Quando a encomenda chegou, Maria já feliz com tanto chá, resolveu ser ela a tratar da “cerimónia” para se habituar quando fosse ela a organizar uma reunião no seu palácio.
Pegou numa grande panela, encheu-a de água e, quando esta começou a ferver, meteu nela os dois quilos de chá que deixou cozer como se tratasse de hortaliça.
A criada pasmava!
Quando se puseram à mesa, sofregamente serviram-se do “bendito” chá que os tornava ilustres como os demais…
Joaquim fez uma careta.
- Maria, esquecestes-te do sal, do azeite e vinagre!
- Pois foi… - Chamou a criada e mandou vir os condimentos em falta.
Mesmo assim, não conseguiram tragar aquela mistela. Joaquim furioso reclamou:
- Raios partam as madames… chá para aqui, chá para acolá… afinal é esta porcaria que comem?
Tocando a sineta, disse para a criada:
-Traga-me um bocado de toucinho!

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O Outro Lado

Gosto e preciso muito de escrever, contar tanta coisa que me foi dado viver.
Isto já todos entenderam! Mas há mais caminhos de realização na minha vida.
Com as palavras vivo um dinamismo, uma comunhão de sentimentos, pensamentos e emoções com os quais interajo. Sinto-me plenamente realizada neste processo de encontrar a minha própria verdade.
Depois… há outros espaços onde voo com a mesma liberdade e prazer: a arte e a beleza!
São formas também de relação com os outros, com os quais crio laços imensamente gratos e belos que nos unem. Estou a falar de decoração e arranjos florais.
No dia em que já não for capaz de compor uma jarra ou enfeitar a minha casa, estarei perdendo o caminho da ponte que me une aos outros.
Alimento também a Amizade quando vou decorar a Igreja para os casamentos ou baptizados e executo os bouquets das “minhas” noivas. Ao complementar a sua felicidade, o meu trabalho é uma oração que deponho nas suas vidas.
O amor a esta arte valoriza-me porque ninguém mo deu mas faz parte do meu ser que se completa em tantas áreas.
Partilho com amor e alegria aquilo que me faz sentir bem e tranquila.
Sem dúvida, o Belo atrai-me!
Tenho tanto a agradecer Àquele que me deu estas capacidades… Há também um legado genético que não posso esquecer, a história pessoal da minha vida e os afectos (todos) que recolhi pelos caminhos por onde passei.
Não há pois monotonia nos meus dias mas sim falta de tempo para estar inteira e com frequência, em tudo aquilo que gostaria e gosto de fazer.




O último ramo de noiva e a flor para Nossa Senhora (5/10/2010)

Os outros arranjos são mais antigos - alguns para os meus anos, e alguns com flores artificiais.












quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Quando se Casam?


Morava, na altura, num harmonioso chalé entre palmeiras e mangueiras, rodeado de um pequeno jardim sempre bem cuidado. Da entrada até chegar ao chalé percorria-se uns quinhentos metros num carreiro largo tendo, à entrada do mesmo, de um lado, um enorme embondeiro, e do outro um tamarindeiro onde nos empoleirávamos para tirar os frutos.
Pegado ao nosso jardim havia outro chalé onde morava uma família fina, cuja filha, casadoira, estava noiva. O noivo era um conhecido caçador que organizava pequenos safaris e regressava a casa sempre com troféus memoráveis, marfim ou peles de leopardo e de zebra, que ele oferecia à sua noiva, gabando-se sempre da sua habilidade.
A separar os dois espaços havia uma fila interminável de goiabeiras, cujos frutos eram apanhados dos dois lados conforme estivessem posicionados.
Uma tarde, já quase à hora do lusco-fusco, apanhava eu umas goiabas para a minha mãe fazer doce, quando vejo chegar um criado negro com um grosso molho de peles secas, oferta do noivo. Em confidências connosco, a menina disse-nos que queria mandar curtir as peles em Lisboa para forrar um grande divã porque, depois de casada, tencionava convencer o noivo a fixar residência em Lisboa.
Acontece que um dia apareceu na cidade uma companhia de teatro das muitas que percorriam África (ex-portuguesa) de lés a lés, com mulheres bonitas e animadas. Claro que os rapazes desde logo se entusiasmaram e organizaram programas com as artistas. O nosso caçador não resistiu ao pecado e de imediato juntou-se ao grupo.
Meios pequenos… tudo se sabia e daí resultou um escândalo que a noiva enfurecida espalhou aos quatro ventos, avançando que não haveria remissão para o traidor. Corte de relações e devolução de todos os presentes e cartas e o final de um noivado tão sonhado.
Dias depois, vi o atado de peles secas aos ombros de um criado negro, seguir o caminho de regresso.
A Companhia de Teatro partiu para outras paragens mas, durante um mês tempestuoso, as afrontas e desafrontas surgiam dos dois lados. Depois de muitas peripécias, os noivos reconciliaram-se. E o atado de peles de leopardo, aos ombros de um criado negro, voltou para casa da noiva.
Mas estava criado o precedente - por isso, daí em diante, sempre que o par de noivos se zangava eu via o atado de peles de leopardo, enorme, volumoso, fétido, a sair da casa da noiva aos ombros de um criado negro, em direcção à casa do rapaz.
Tempos depois tornava a ver, após nova reconciliação, o atado de peles de leopardo aos ombros de uma criado negro, entrar pela porta da noiva.
Como ela era minha vizinha muitas pessoas pensavam que eu saberia mais sobre estes noivos tão inconstantes. E perguntavam-me:
- Então, quando é que eles se casam?
Quem o podia saber? Eles viviam num pegado vaivém de rupturas e reconciliações que atrasavam constantemente o enlace.
Eu só podia calcular em que ponto estava o noivado, recordando aonde parava o atado de peles de leopardo.
Em casa dela? Tudo ia melhor, no melhor dos mundos!
Em casa dele? A noiva chamava-lhe malandro, acabava com o noivado ameaçando casar-se com um amigo do seu irmão.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Outono




Outono vem em vulvas claridades...
Vamos os dois esp'rá-lo de mãos dadas:
Tu, desfolhando as rosas das estradas,
E eu, escutando o choro das saudades...

Outono, vem em doces suavidades...
E a acender fogueiras apagadas
Andam almas no céu, ajoelhadas...
E a terrra rez a prece das Trindades.




Choram no bosque os musgos e os fetos.
Vogam nos lagos pálidos e quietos,
Como gôndolas doiro, as borboletas

Meu amor! Meu amor! Outono vem...
Beija os meus olhos roxos, beija-os bem!
Desfolha essas primeiras violetas.



- Florbela Espanca in Poesia: 1818-1930