quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Se Um Dia...


Se um dia tiveres de dizer um “Não”, é forçoso que ele seja de tal maneira firme e estribado num motivo forte que não te permita trocá-lo por um “talvez” e este por um “sim”.
Para tanto é preciso que não seja falsa a estrutura moral que enganosamente te obrigou a ser radical sem coerência.
Acredita que o “não”, se tiver sido dado com ponderação e justiça, é mais valioso para quem o recebe do que o “sim” final, recebido tantas vezes após haver deslizado pela escala falsa da moral, percorrendo um caminho sem elevar ninguém, sobretudo a ti, se o disseste, tendo começado pela negativa balofa nascida do orgulho ou da vaidade, se te deixas vencer pela subtileza da mesma, ou da lisonja, defeitos que são habilidade do ser humano.


Por isso, para que a tua moral não desabe como um castelo de areia, que seja o “não”, “não”, e o “sim” – um “sim” dado com o mesmo amor e sublimidade com que deves pronunciar a mais acérrima negativa.
É que, às vezes, há mais amor no “não” que se diz e mantém do que naquele “sim” escondido por entre o sorriso da traição!
Acredita que um “não” dito com convicção do justo na hora exacta, pode salvar aquilo que o “sim” do traidor pode matar no minuto seguinte!


sexta-feira, 19 de novembro de 2010

A Fila Indiana...



(História contada pelo meu pai)

O meu pai tinha um amigo, o Martins, que vivia no interior da Zambézia. Era o típico dono das grandes plantações que existiam em Moçambique.
Era muito jovem e inexperiente quando, com muita coragem e ânimo, decidiu ser dono de uma área extensa de terra. Pele tisnada pelo sol, honesto, amigo do seu amigo, tinha um sentido da vida de gentleman britânico.
A sua plantação era como um condado que ele percorria quase todos os dias a cavalo para inspeccionar todos os seus trabalhadores. Centenas de milhar de palmeiras, canas-de-açúcar e café que trepava pelas encostas em procissão de arbustos verdejantes que a floração vestia de branco.


Para além de tudo isto que já era muito, o Martins tinha cerca de mil e quinhentas cabeças de gado. A casa, muito cómoda e funcional, era iluminada com gerador eléctrico como era usual no interior do mato. A cem quilómetros dali ficava a densa floresta onde viviam leopardos, leões e elefantes. O Martins era um bom anfitrião mas gostava também das delícias da publicidade. Convidava muitas vezes grupos de amigos de Quelimane para passarem dias na sua casa do palmar. Nessas ocasiões organizava uma caçada ao leão.
Era tudo a preceito não faltando nada para aumentar a excitação e igualmente a admiração de todos.
E lá estavam os caçadores negros armados com zagaias e velhas espingardas. Os amigos tinham trazido um arsenal moderno e caro.
Para que tudo corresse sem incidentes, o Martins tinha contratado mais moleques para servir condignamente os amigos citadinos… Tinha um cozinheiro famoso em toda a Zambézia, um chefe indiano que sabia desossar um peru e recheá-lo com maçãs. No campo dos doces não ficava atrás, eram delícias sobre delícias.
Os almoços à Zambeziana ficaram célebres por terem uma variedade de pratos que se seguiam uns atrás dos outros e cuja degustação demorava toda a tarde até ao cair da noite.
Por último, quando já quase ninguém conseguia ver mais comida à frente, apareceram leitões assados a que ninguém tocou. O Martins tinha um amigo que detestava leitão e dizia ele que ao vê-lo estendido numa travessa, com a sua pequena cabeça bem loira do forno, lhe davam ideias de um manjar antropofágico.


As três travessas com os bacorinhos saíram intocadas da mesa, direitinhas à cozinha.
O cozinheiro nessa noite ficou doente, impossibilitado de apresentar os pitéus a que já habituara os convivas. No dia seguinte, o Martins desculpava-se e apresentava os três leitões em fila indiana, acompanhados de uma abundante salada. Mas o cozinheiro não melhorou e o amigo do Martins viu, com terror, os leitões assados voltarem a figurar no cardápio do dia.
Quase ninguém lhes tocou… De tanto convívio já lhes pareciam mais uns dos convidados!
Ao jantar, voltaram os três em fila macabra e saíram da mesa sem uma beliscadura.
O Martins estava desolado com o fracasso das ementas. O amigo, que detestava este manjar, pensou em resolver a questão de uma vez por todas antes que os três pequenos bichos aparecessem no dia seguinte estendidos no seu leito de puré.
De madrugada, dirigiu-se à copa e retirou do armário de rede a companhia indesejável.
O amigo sabia que havia muitos cães que passavam a noite no pátio. Riu-se feliz. Abriu a janela e despejou as três travessas esperando que a matilha fizesse o resto.
Ria-se ao pensar na cara do cozinheiro quando desse pela falta dos leitõezinhos… Até dormiu melhor!
À hora do almoço dirigiram-se todos para a sala na esperança de que o cozinheiro indiano já estivesse melhor. O amigo do Martins esfregava as mãos mas… foi por pouco tempo!
No meio da mesa, triunfalmente, estavam os temíveis porquinhos, os três agora cobertos de uma capa de ovo e pão ralado!!!

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

O Coração tem Razões...

Muitos amigos meus perguntam-me porque nunca mais voltei a Quelimane, a Moçambique, depois de ter criado um blog para recordar a minha terra, homenageá-la e lembrar os anos mais felizes da minha vida… Parece-lhes que é um sofrimento que alimento por querer, com medo de encontrar fantasmas escondidos nas dobras do passado... É difícil explicar as razões, talvez até nem encontrasse as palavras adequadas… Seria um regresso solitário a um cenário onde já faltam tantos intervenientes! E se calhar, o cenário até já nem seria o mesmo…
Ao ler o prefácio do livro “ Postais Antigos e outras Memórias da Zambézia” escrito pelo Dr. José Alves Pereira e com fotos de João Loureiro, achei que ele, meu colega de outrora e amigo de sempre, encontrara as razões do coração… e como senti as palavras identificadas com a minha saudade e angústia de nada mais ser igual, vi nelas, bem explícitas, as razões do coração e as razões da Razão!
Respiguei algumas passagens, aquelas que, precisamente, poderiam ser as minhas razões…
“ A planície imensa, de um verde escuro, retalhada por longos cursos de água, estendia-se como um tapete vivo por debaixo do avião.


- Os tandos de Marromeu e o Zambeze, disse eu ao João Loureiro que, interessado e atento, olhava a fascinante paisagem.
- Onde fica o Chinde? É ali? Inquiriu ele, apontando um pequeno ponto do casario, submergido pelo verde e rodeado pelo rio e pelo mar.
- É, confirmei, admirado pelos conhecimentos geográficos de quem, julgava eu, pouco ou nada deveria saber sobre aquela terra imensa, onde eu passara toda a minha juventude.
“-Zé, vamos a Quelimane e eu preciso de um cicerone como tu. Trouxe alguns postais antigos e quero compará-los com o que ainda existe no terreno.


A princípio, a ideia não me pareceu particularmente apelativa. Na divisão de memórias do meu cérebro, Quelimane, os palmares, a Zambézia imensa e rica, cheia de vitalidade económica e habitada por uma das mais interessantes comunidades multi-étnicas e multi-culturais de Moçambique, estavam arquivadas em lugar querido e reservado onde eu, em momentos de recolhimento, as visitava de mansinho.
Sabia que as novas imagens se iam, necessariamente, sobrepor às antigas, guardadas e preservadas quase religiosamente. E, francamente, não sabia se essa intrusão iria ser benéfica ou nociva.
Porém, o desafio era forte demais. Estava a duas horas de voo dos locais onde crescera, onde estavam sepultados alguns dos meus familiares, onde a minha personalidade, a liberdade, o amor ao espaço, a eterna nostalgia não explicada em África, se haviam sedimentado dentro de mim.
E aqui estamos nós prestes a aterrar em Quelimane…
Depois foi a re-visitação. O passeio silencioso ao longo das ruas estranhamente calmas, a surpresa de ver que alguns dos locais mais marcantes não haviam sido preservados e notar que outros, que eu julgava menos significativos, haviam adquirido uma nova vitalidade.
…Envolto pelos sons mágicos da noite africana, no solitário quarto do Hotel Chuabo, fui acometido da estranha sensação de que eu já ali não pertencia. Que eu era um actor deslocado, num cenário familiar, onde a peça em cena me era estranha.
Mas pouco a pouco, compreendi que ninguém poderia acrescentar ou diminuir personalidade àquela cidade, onde o asiático, o europeu e o genuinamente africano se fundem num singular equilíbrio.


…No dia seguinte foi a partida para a espantosa praia do Zalala, com os seus palmares imensos
e as suas casuarinas sussurrantes, num cenário predestinado a ser um dos locais turísticos mais marcantes na costa oriental de África.
Foi a visita às planícies sem fim do Mucelo, à propriedade agrícola junto ao rio Licuar, onde os sonhos do meu pai ficaram enterrados e onde, sob o impiedoso capim africano, ainda se alinham os cajueiros e laranjeiras que, com devoção e carinho, foram por ele plantadas.
É pois com imenso gosto e prazer que acedi em colocar algumas sentidas linhas neste livro que o João Loureiro em boa hora promoveu. Falta-me, certamente, em palavras o que me sobra em emoção. Mas as coisas feitas com alma, se nem sempre se coadunam com a razão, têm, pelo menos, o mérito da emoção que as motiva.
Da inesquecível viajem retenho, ao regressar, a expressão indecifrável do meu velho pai, com os seus quase noventa anos, a quem eu relatei entusiasmado a visita ao que restava da sua querida propriedade agrícola. Fitando-me com os olhos parados, disse-me:
-Filho, falas-me de coisas tão longe! “
Obrigada Zé! Eram estas as palavras que me faltavam para explicar, a quem me pergunta, porque razão não volto eu a Quelimane…
O coração tem razões…

sábado, 6 de novembro de 2010

As Meninas


Da estrada, via-se a mancha branca do casarão por entre as palmeiras e bananeiras!
Diziam que era a Casa das Meninas… O pecado escondia-se longe da cidade! Cidade pequena onde quase todos se conheciam e os casos extra-conjugais andavam sempre na ribalta, sendo os primeiros interessados os últimos a saberem.
À Casa chamavam também Galo Branco… Quando perguntava a razão desse nome aos meus amigos rapazes, eles mudavam de conversa.
Nessa altura, era eu uma doce colegial de espírito e atitudes e sonhava com o amor da minha vida… Aquele que preencheria todas as horas e minutos do meu dia. Devo confessar que tinha muitos candidatos a esse lugar… talvez devido à minha extrema alegria e boa disposição.
Mais tarde, dar-me-iam outras razões…
Um dia no “meu” cabeleireiro encontrei duas ou três dessas meninas… Pareciam artistas de cinema! Tive de concordar que eram realmente bonitas e elegantes. Autênticos manequins é o que eram! Arranjavam os pés, as pernas, faziam limpeza de pele e pintavam o cabelo.
Curiosamente, eram todas loiras! Tive de fazer um esforço para não fincar os cotovelos e ficar de boca aberta, como os garotos, diante de uma montra de novidades.


Quando encontrei um dos meus amigos, disse-lhe:
- Hoje vi as meninas da Casa Branca (eu chamava-lhe assim...) e são bonitas de verdade… Arranjaram-se dos pés à cabeça…
- Como tu és inocente! Essas meninas dariam tudo para terem os teus vinte anos, esses olhos negros e cabelo de azeviche de ciganita…
- Mas eu sou baixinha… - e a raiva morava dentro de mim, por não ser alta como as “meninas” e por saber que elas se arranjavam para roubarem o amor dos homens da cidade.
Uma amiga minha, pouco mais velha do que eu, tinha-se casado cedo e já ia no terceiro filho, uma escadinha em caracol como eu lhe dizia. O marido era um pouco mais velho do que ela e um valente pinga-amor, o que toda a gente via… menos ela. Ah! A cegueira do amor!
Um dia, a minha amiga descobriu no colarinho de uma camisa do seu amor, uma mancha de batom. Não podia ser, ela até nem se pintava e mostrando-lhe a “arma do crime” perguntou-lhe:
- Mas o que é isto, se eu não uso batom?
E o Don Juan pôs logo os neurónios a trabalhar…
- Não é batom, minha querida, é um creme que comprei na farmácia para as mordeduras dos mosquitos…
- E perfumado?
- Claro, para os afugentar…
Não sei se foi nesse dia que a minha amiga decidiu estar mais atenta aos mosquitos ou se evitou dizer-lhe duas que estavam debaixo da língua e no coração.
Como ela o soube, não sei! Mas sei que ela entendeu que o seu ídolo tinha pés de barro e que os serões do escritório decorriam na maior parte das vezes na Casa das Meninas ou da menina que, entretanto, passara do colectivo para um apartamento na cidade montado pelo seu querido.
Uma noite, a minha amiga descobriu o carro do marido à porta do prédio. Foi fácil chegar aonde ela queria…
Não fez qualquer cena, dentro de casa tudo continuava na normalidade de casal.
Uma manhã, depois de o marido sair para o trabalho pegou nos seus três filhos – a tal escadinha em caracol – ainda ensonados, de pijama, e dirigiu-se ao apartamento da Menina!
Abriu-lhe a porta uma loira perfumada e com um ar de espanto…
- Não me conhece e nem o desejo, venho apenas mostrar-lhe as três crianças a quem você rouba o pão e o amor e o tempo do pai…
A minha amiga voltou para casa como se nada tivesse acontecido.
Estranhou que os serões do marido tivessem terminado e perguntou-lhe:
- Agora não fazes serões?
- Não, não… já temos o serviço todo ordenado, felizmente!
Ela sorriu pensando que o estratagema dera resultado e ficou ainda mais feliz quando uma vizinha da menina lhe disse que a mesma partira inesperadamente para Lisboa deixando um bilhete ao papalvo que a sustentara.


segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Os Versos Que Te Dou...


Ouve os versos que te dou, eu os fiz.

Hoje, que sinto o coração contente…
Enquanto o teu amor for meu somente,
Eu farei versos e serei feliz.


E hei-de fazê-los pela vida fora
Versos de sonho e amor e hei depois
Relembrar o passado de nós dois
Este passado que começa agora!


Estes versos repletos de ternura
São versos meus mas teus também
Sozinho, hás-de escutá-los sem ninguém
Que possa perturbar nossa ventura.


Quando o tempo branquear os teus cabelos
Vais um dia mais tarde revivê-los
Nas lembranças que a vida não desfez…
E ao lê-los com saudade em tua dor
Hás-de rever, chorando, o nosso amor
E hás-de lembrar, sofrendo, quem os fez.



Se nesse tempo eu já tiver partido
E outros versos quiseres – teu pedido
Deixas ao lado da cruz para onde vou.
Quando novamente então tu fores
Podes colher do chão todas as flores
Pois são versos de amor que ainda te dou!

- Graça Machado