Passam-se tantos anos num ano de ausência… Foi isto sobretudo que ele sentiu ao regressar após cinco anos em África. Muito tempo decorrera dentro dele e nas pessoas que vinha agora reencontrar. Supunha que só ele vinha diferente e que qualquer mudança na sua maneira de ser era produto natural de uma larga vivência em terras longínquas.
A solidão marcara-o como a tatuagem de um marinheiro. Solidão e luta.
Dingo não o conheceu e atirou-se-lhe furioso como a um estranho. Dingo, o cão companheiro de todos os momentos. O cão que ele vira nascer e trouxera para casa, pequenino.
O amigo, o camarada permanente, cuja alegria dependia exclusivamente dele, que só com ele brincava e da sua mão comia. Pois afinal – o que é a força da vida! – acostumara-se a outros donos e agora, preso a uma corrente, ladrava e reagia à presença daquele que fora tudo para ele. Bem modificado vinha, de certeza. Não era apenas a barba como dizia a mãe: “Com essa barba ninguém te conhece”… Era a alma. Os cães pressentem a alma.
Tudo nele se modificara… até a faculdade de querer bem. Já não era capaz de querer bem ao cão por isso o estranhara. Olhava para tudo com um olhar distante… Para a casa, para a quinta que tanto o interessara na sua qualidade de agrónomo. “Posso deixar de existir que tudo continua sem mim… Para quê afinal o esforço de sobreviver”?
“Dingo vai levar esta carta à Laura” - E Dingo ia, de carta na boca, todo ufano, a abanar o rabo.
Há quanto tempo se passara isto? Há cinco anos. Há cinco somente. E parecia há tanto tempo… Apeteceu-lhe repetir a proeza: “Dingo, vai levar esta carta à Laura…” E silabou melhor: “à Laura!” Mas Dingo em vez de obedecer, ladrava.
Pobre Dingo sempre preso agora… “Teve de ser - explicaram. “Não podemos soltar um cão que se atira a qualquer pessoa que entre na quinta. É um perigo.”
Pensou: “Quando cá estava nunca mordeu ninguém.”
A mãe, daí a dias, como quem não quer a coisa (as mães têm um jeitinho especial para isto) falou de Laura. Que se casara, talvez ele não soubesse a novidade. Casara-se com um rapaz de Lisboa, boa gente, segundo diziam, mas de pouco dinheiro. Possivelmente entusiasmara-se com o dinheiro dela. Ele não sabia que Laura tinha dinheiro, nunca pensara em tal coisa.
Admirou-se: “Pelo dinheiro e não por gostar dela…” Não quis ouvir mais. A pergunta morreu-lhe entre os lábios: “e é feliz?” A mãe poderia dizer-lhe que não até à maneira de consolação.
E como seria mil vezes pior sabê-la infeliz… Não se importou em indagar mais. Aliás que poderia ele esperar se não lhe escrevera nunca? Natural que Laura o esquecesse…

Dias depois, notou que alguém vinha buscar Dingo para um passeio. Ouvira falar nisso desde que chegara mas o desalento não o tornara curioso. Andava alheado de tudo.
Uma tarde, observou a cena da janela do seu quarto – Uma rapariguita delgada, com um aspecto semi-intelectual, semi-desportivo, levava Dingo que, aos pulos, mostrava o seu entusiasmo sem se poder conter.
- Dingo, juízo! – e a sua voz meia autoritária, meia doce, enchia o ar de melodia.
Quem era? Pelo à vontade devia ser alguém das proximidades… Não se informou. Apetecia-lhe tão pouco falar, a sua própria linguagem o cansava. E depois o mistério rodeava a cena de certo encanto.
A mãe, sempre que podia aconselhava-o a casar e ele nem queria ouvir falar no assunto.
Entretia-se pois a assistir à cena da rapariguita com o Dingo atrás da cortina do seu quarto, como se estivesse nos bastidores e com um certo fausto teatral.
E a cena de facto repetia-se frequentemente. Até com uma certa assiduidade.
Dingo parecia adivinhar os dias em que a amiga o vinha buscar. Tornava-se veludo para ela.
A rapariga frágil como um junco e Dingo com toda a sua força, ficava manso e feliz pela sua trela… Seria a irmã de Laura, a pequenita das tranças feita mulher?! Mas não eram parecidas…
Eram agora dois a esperá-la: Dingo junto da casota todo excitado, ele, por detrás das cortinas corridas, as primeiras vezes por curiosidade, agora de sorriso nos lábios e uma esperança a crescer-lhe no coração.
Certa tarde, a mãe lançou isto no espaço:
- A Sara vem buscar o Dingo. E sabes porquê? Por ti. Quando te foste embora jurou que havia de substituir-te. Não te lembras dela?
Não se lembrava. Isto é, havia uma imagem de uma garotita de tranças… mas era então aquela jovem mulher?! Ah pois cinco anos é muito tempo…
-E porquê substituir-me?
- Não sei. Diz que o Dingo costumava levar uns bilhetes teus… qualquer coisa assim parecida. Bilhetes para a Laura, mas ela é que os recebia para entregar à irmã e ficou a gostar do cão e pronto, dá-se à maçada de o vir passear e o Dingo adora-a.
No meio do silêncio em que dormia a sua alma, qualquer coisa acordou como uma planta ao primeiro toque da primavera. O silêncio, entretanto , era ainda muito largo, muito profundo, havia camadas de neve e camadas de neve por cima daquilo que ele verdadeiramente era.
Manteve-se na posição: atrás das cortinas. Simplesmente havia agora um brilho novo no seu olhar.
- Amanhã a Sara vem lanchar cá em casa. Espero que nos faças companhia. - anunciou a mãe.
Não apareceu, mas, a partir daí, a Sara ficava sempre para lanchar depois do passeio com o Dingo. E era tão agradável o timbre das suas gargalhadas que ele deixou-se contagiar. Começou a rir também. Ao princípio, era uma presença silenciosa. Depois conversou. Os acontecimentos foram-se sucedendo lentamente, muito lentamente… até que um dia, aconteceu, aquilo que já se adivinhava.
É muito bom ter um cão!!