Deslumbrada, a menina descobriu que aqueles sinais pequeninos se chamavam letras e que, juntando-as, construía um batalhão de palavras sem fim! Seria assim que as pessoas grandes escreviam histórias para os meninos lerem?
Um dia, o pai trouxe-lhe um livro com fadas e florestas encantadas, muito colorido, em forma de castelo! Abriu a porta com cuidado e… lá estavam elas as pequeninas letras ainda misteriosas mas prontas a serem decifradas por quem deveras quisesse! E a menina queria!
Olhou as imagens devagarinho como quem chupa um rebuçado e reparou que havia palavras que se repetiam em todas as páginas, iguaizinhas, prontas a serem acordadas para construírem a história. Repetiu aquele desfolhar do livro, dias a fio!
Um dia, pela noitinha, disse aos pais: já sei ler!
- Como? – Perguntaram os pais admirados.
A menina foi buscar o livro mágico, poisou-o no seu colo e abrindo-o, leu devagar:
- Era uma vez… - E a sua vozita enchia de magia a pequena sala. Os pais encantados admiravam o jeito que a filha tinha, pronunciando cada palavra como se a acariciasse.
A menina fechou o livro devagar, muito devagar.
- Acabou? – Perguntaram de novo os pais.
- Não, continua aqui… - E com a mãozita apontava a cabeça.
- Aí? E porquê?
- Porque eu quero escrever um livro!
- Um livro? E de quê?
- De tudo… para os meninos e para as pessoas crescidas!
Os pais entenderam que seria mais do que um livro, era aquela vontade que a pequenita tinha de conhecer o mundo que levava a sua fantasia até horizontes inacessíveis, embalada em ilusões talvez enganadoras.
Mas não eram sonhos passageiros.
A menina começou a contar histórias aos seus amigos que, fazendo uma roda à sua volta, ficavam boquiabertos ao ouvi-la. Na pequena praceta de areia solta que haviam adoptado como sua, as crianças brincavam sem medo. A menina era líder.
Descalços, jogando ao berlinde, sacolas atiradas para o chão, mãos sujas de tanto empurrar as bolinhas de muitas cores e as orelhas moucas ao chamamento das mães. “Meninos, venham lanchar”. E o chamamento esmorecia de cansaço.
Já os candeeiros da rua se acendiam e eles ainda escutavam a voz da menina contando histórias sem parar.
-Conta mais, conta mais!
E só voltavam a casa quando da varandinha da frente, surgia a padeira, uma mulher alta, corpulenta com um enorme vozeirão e que com as mãos na cintura, gritava:
- Anda Maria, vem jantar imediatamente. Os teus colegas não têm casa?
Todos tinham medo da padeira mas ela conseguia aquilo que as mães vinham tentando há horas: tirar os filhos da rua.
A menina voltava para casa a pensar em novas histórias para o dia seguinte e quando as não podia contar passou a escrevê-las e não havia papel que lhe chegasse.
A menina cresceu e os pequenos sinais, tão familiares, deixaram de ser misteriosos e descobriu então, como com todos eles podia dizer tudo o que quisesse. Encheu páginas de diários onde escrevia os seus sonhos infantis e, mais tarde, os de adolescente!
Daí passou para os jornais e para as revistas mais conhecidas… Fez reportagens, entrevistas, escreveu crónicas e até teve direito a uma Coluna Editorial no periódico mais conhecido.
Mas havia sinais que ela queria outro caminho… Amadurecera e começara a separar de forma mais nítida e concisa as metas e os projectos. Foi recolhendo e observando tudo o que a cercava. Ouvia dizer muitas vezes: Gosto do que escreves! Mas não lhe bastavam os elogios.
Sabia que queria ir mais longe, muito mais longe…
Queria escrever um livro onde contasse todos os tesouros que trazia dentro de si. Podia passar muito tempo até o conseguir fazer mas pensava que, afinal, as verdades nunca mudam de pele.
Mas o tempo encarrega-se, não raras vezes, de mudar o cenário e, um dia, num rumor baixinho que foi subindo de volume, ouviu dizer que aquela já não era a sua terra. Como não era a sua terra? Não nascera e vivera sempre ali? Foi difícil aceitar a ideia e teve de a amassar permanentemente como se faz ao pão. Enrolou os sonhos e a alma e partiu para o outro lado do mundo com os pássaros que nunca aprenderam a voar. Fechou portas e janelas e guardou na profundeza de um lago adormecido, tudo o que trouxera consigo.
O tempo passou com a promessa de outros novos tempos.
Mas a vida contrariou tudo aquilo que a menina sonhara e no ancoradouro da mesma, recebeu nos seus braços a perda dos seus grandes amores. Dizem que em todas as lágrimas há sempre uma esperança e a menina acreditou que seria assim. Mas a contabilidade dos dias é difícil de se fazer e a imaginação atraiçoa qualquer sonho que se possa ter.
Um dia olhou-se atentamente naquele espelho por onde passava todos os dias sem se ver e descobriu que havia rugas que, em tempos, não tinham estado ali. Quanto tempo tinha passado embrulhando as horas e os meses, perdendo a noção da dimensão do seu caminho?
Que fizera dos seus sonhos?
Alguém sugeriu à menina que criasse um blogue em substituição do livro que ainda queria escrever. Seria a maneira mais segura de agarrar o passado. A massa era a mesma: havia leitores, comentários e não se pagava à Editora... Mas descobriu que não era a mesma coisa, tinha perdido terreno e a frustração era agora uma presença constante e amarga.
Começou então um diálogo entre a persistência e a validade da frase que um dia, em pequenita, dissera aos pais: quero escrever um livro! Resignação? Ficar pelas imitações? Até estas têm um preço. Precisava de coragem, aquela que faz mover o mundo e oferece asas aos sonhos. Olhou o caminho andado… tanto! Olhou o caminho que lhe restava… pouco!
Ainda iria a tempo? Não queria mais a sua alma naufragada nos rochedos da dúvida.
A menina pensou, agarrou nos pingos que lhe sobravam de entusiasmo e, numa noite quente a lembrar a sua terra, olhou o céu e viu duas estrelas muito juntinhas com uma luz muito brilhante e sem querer, como algo que subia do mais fundo do seu coração, disse:
- Eu vou escrever um livro!
- Graça Pereira
Queridos Amigos,
Vou estar ausente ou, pelo menos, não tão presente neste espaço. Vou escrever um livro ou antes… acabá-lo e preciso de tempo. Uma coisa vos confesso desde já: não sei se o editarei mas tenho a certeza que o vou escrever. Como diz uma amiga minha: o resto… logo se verá!
Um beijo a cada um.
