Em Quelimane e em toda a Zambézia os funcionários públicos administrativos tinham direito a moradia mobilada com o essencial e às vezes, mais do que o essencial.
Isto acontecia porque, como eles afirmavam, e era verdade, andavam sempre com “a casa às costas” e o Governo facilitava-lhes a vida nesse sentido.
Julgo que, no resto do país (Lourenço Marques, Beira, Nampula etc.) também estes tinham direito à habitação mas aqui eram apenas contemplados os mais altos funcionários.
Um dia foi colocado em Quelimane um novo Director da Fazenda. O anterior tinha chegado à idade da aposentação e regressara com a família a Lourenço Marques.
Entretanto o Governo Distrital resolveu aproveitar a ausência temporária do novo morador da casa (casarão) do Director de Fazenda para operar nela várias modificações. Pintá-la, modernizá-la um pouco e até renovar mobiliário e cortinados.
O nosso herói foi avisado por telegrama que só deveria apresentar-se em Quelimane daí a uma semana… Mas, tal como um gato guloso perante um bom prato de leite, ele lambia-se imaginando todas as honrarias que estariam à sua espera. De um desconhecido e vulgar funcionário público, passaria a ter direito a regalias com que nunca sonhara…
Não desconhecia que na Zambézia os funcionários públicos mais graduados eram… pequenos reis! E à medida que pensava em todas essas mordomias, inchava como o sapo da velha história.
Avisou a família:
-Vou mais cedo para preparar tudo para a vossa chegada!
A família achou que era natural pois para além de Director da Fazenda ele era, primeiramente, chefe de família!
Fez um simples telefonema para Quelimane avisando a sua chegada antecipada.
Perguntaram-lhe se vinha só. Disse que sim.
O funcionário responsável do departamento de colocações respirou aliviado e de imediato marcou um quarto no melhor Hotel da cidade.
Encarregou o motorista negro que fosse buscar o senhor Director ao aeroporto no carro do Governo e o levasse directamente para o Hotel uma vez que o Governador e o seu Secretário estavam ausentes em visita Distrital como era habitual todos os meses.
O motorista ainda perguntou:
-Este senhor Director não vai ter carro?
-Claro que sim mas está também a ser alvo de uma revisão para o entregar sem qualquer problema.

No dia seguinte, muito antes da hora de chegada do avião que vinha de Lourenço Marques, o motorista, devidamente fardado, olhava pela vigésima vez o carro do governo, procurando qualquer mancha ou alguma poeira indesejada e gastava as solas dos sapatos do carro para a sala de espera e vice-versa.
Pensava: Como o vou conhecer? Sabia apenas o seu nome.
Mas seria mais fácil do que ele pensava!
Quando começaram a sair os passageiros numa diversidade própria de um aeroporto que ficava a meio de Moçambique e era escala para diversos pontos do Norte, o motorista apercebeu-se logo do personagem que esperava.
Um homem vestido com um bom fato, alto, empertigado, com um olhar vaidoso, foi o último a descer do avião.
Do alto da escada respirou fundo, olhou para todo o lado… talvez à espera da fanfarra e achou que faltava ali alguma coisa. Apertou a pasta de boa pele que trazia na mão e foi descendo devagar talvez à espera que alguém viesse a correr e estendesse a passadeira vermelha…
Entrou na sala de espera um pouco confuso e atordoado.
De repente uma voz junto a si perguntou:
-É o senhor Director de Fazenda?
Olhou espantado a cara negra do motorista.
-Sou… e o senhor Governador onde está?
O motorista ficou surpreendido e não querendo dizer-lhe que era sempre ele, com o Secretário, que vinha buscar as novas individualidades públicas colocadas em Quelimane, pensou rapidamente e esclareceu:
-O senhor Governador e o senhor Secretário estão ausentes visitando o Distrito e pedem muita desculpa de não estarem presentes mas como o senhor Director veio mais cedo….
O VIP acalmou-se um pouco.
-Vamos lá então e leve-me a minha casa.
O motorista engasgou-se…
-A casa do senhor Director ainda não está pronta…só daqui a dois dias…
-O quê? - E o grito foi tão arrepiante que o motorista deixou ir o carro abaixo.
-Desculpe senhor Director mas eu vou levá-lo ao Hotel onde tem quarto marcado e logo irei buscá-lo para se apresentar no Governo.
-O quê? - repetiu outra vez. Também não tenho carro? Em Lourenço Marques, no Governo Geral, vão saber de todas estas deficiências e o modo como recebem a autoridade.

Quem conhece Quelimane sabe que os aeroportos (tanto o antigo como o novo) distam uns quilómetros da cidade. Por isso, o motorista decidiu não abrir mais a boca e carregou no acelerador.
Entretanto, o sapo, isto é, o Director, desfiava todos os adjectivos pejorativos que conhecia.
-É aqui o Hotel, senhor Director – Disse o motorista tirando o boné e abrindo-lhe a porta do carro.
-Não, não! Primeiro quero passar pela minha casa.
O motorista fez-lhe a vontade. Quando passaram pelo casarão, que tinha andaimes, pôde realmente constatar que estava a ser pintado. Os olhos reviraram-se perante a sua nova moradia rodeada de um largo espaço com um jardim bem cuidado. A vaidade encheu-lhe o peito e teve de desapertar o nó da gravata.
O motorista deixou-o no Hotel com algum alívio, perturbado com tanta importância e vaidade que nunca tinha visto em ninguém.
Quando chegou ao Governo avisou que o senhor Director já estava alojado no Hotel mas que não ficara nada satisfeito por não ter a casa pronta para se instalar.
-Deixa lá! Logo, quando se apresentar já terá o seu Mercedes aqui pronto e tenho a certeza que lha passará a azia.
Mas o senhor Director não apareceu.
À noite, uma noite abafada e quente, normal no Chuabo, o passeio em frente ao Jardim Municipal onde havia um velho coreto, estava apinhado de pessoas que se riam sem compreender bem o que se passava.
O senhor Director, no meio do coreto, deitado num “burro”(cama articulada muito usada no interior do mato) de pijama, preparava-se para dormir, tendo ao lado um penico e um relógio despertador.
No gradeamento do coreto lia-se um cartaz:
“É assim que Quelimane recebe as altas individualidades do Distrito, nomeadas pelo Governo Geral de Moçambique.”
Quem não gosta de mordomias? Mas deu resultado…