Que sabemos nós do mistério que cada um trás dentro de si?
Interrogava-me porque é que uma mulher bonita como aquela e sempre bem vestida, nunca sorria. Nunca entendi se era ela que se marginalizava do resto dos colegas ou se eram estes que a marginalizavam.
Eu tinha dezoito anos, terminado o Liceu e saído há três ou quatro meses de um colégio de freiras. Tinha do mundo uma ideia cor-de-rosa, onde todos eram amigos e se davam bem. Moralmente possuía uma estrutura forte e sabia o que queria da vida. Não sabia bem qual era o caminho e como seriam esses caminhos para chegar até onde me fosse permitido. Faltava-me experiência na mesma medida em que me sobrava alegria e muitos ideais. Mas foi precisamente esta alegria e simpatia que me abriram muitas portas. Sempre tive facilidade no relacionamento com os outros. Amava por demais a vida e as pessoas para ser de modo diferente. A pior economia do mercado da vida é a economia no amor, na amizade. Os afectos são necessários para crescermos. Todos nós precisamos de um colo para chorar, de braços que nos levantem quando caímos e mãos que nos aplaudam quando for a hora do êxito. Estranhava pois aquele afastamento tacitamente imposto por todos àquela colega e como garota que era perguntava abertamente como fazem os “miúdos”:
- Vocês não gostam da …… porquê?
As respostas vinham evasivas e meio enviesadas:
- É uma petulante, já reparaste que não cumprimenta ninguém e não dá um sorriso?
- Como podem saber se vocês também não falam com ela?
Nunca fui de desistir e pensava que muitos já tinham entrado num processo de derrocada em termos de análise dos outros. Era mais cómodo aceitar o “diz que disse” e ficar no seu lugar sem remar contra a maré. Dá muito trabalho…
Um dia encontrei-me com ela “casualmente” quando íamos tomar um café.
- Bom-dia. Sou uma nova colega e ainda só a conheço de vista. Trabalha na …… Secção, não é? Eu estou na Contabilidade.
Olhou para todos os lados a ver se havia mais alguém ou se era com ela mesmo que eu falava. Ciente de que era com ela fez-me um esgar e seguiu adiante. Atrás as outras colegas aperceberam-se do meu fracasso na abordagem da Miss Esfinge e riram-se:
- Esquece, não vais conseguir nada dela, é a rainha cá do sítio.
Enquanto trabalhava pensava numa certa insegurança que notara na Miss Esfinge e até alguma tristeza no olhar. Aquilo ficou a remoer dentro de mim.
No dia seguinte, abri a porta da secção dela, cuja secretária ficava em frente e perguntei-lhe:
- Quer vir tomar um café comigo?
Mais uma vez olhou para os lados a ver se haveria alguém a quem o convite pudesse ser dirigido. Acabei logo ali com qualquer dúvida:
- Venha ……
Olhou-me espantada mas com um brilho diferente no olhar. Voltou a fazer o esgar que já lhe vira no dia de trás e respondeu-me:
- Vou sim, com muito prazer!
Bem, ao menos não é muda, pensei eu! Conversou muito bem, disse-me que era casada e tinha uma menina com seis anos e abriu a carteira e mostrou-me a foto da filha.
- É muito bonita e parecida consigo.
- Acha? - E o rosto estava limpo de nuvens, brilhante como sol de primavera.
Quando regressamos ao trabalho ela disse-me:
- Amanhã espero por si no café mas não me trate tão cerimoniosamente. Chame-me apenas …... e eu a si vou chamar-lhe Gracinha, se não se importa pois é uma miúda ao pé de mim.
-Claro, claro. - Concordei de imediato.
À saída do serviço estava à minha espera junto de uma valente máquina.
- Reparei que não tem carro e que é o seu pai que a vem buscar, mas hoje não o vejo por aqui…
- É, ele nem sempre me pode vir buscar e a minha casa também não fica longe…
- Ah, mas está muito calor (saíamos às 13 horas) o meu marido não se importa de passar por sua casa.
Apresentou-mo. Era um homem ainda novo, simpático e atencioso.
Durante a tarde, de vez em quando pensava na …… Não vislumbrara nada de complicado na sua vida que fizesse ter aquele ar tão trombudo. Ou seria eu quem não conhecia as pessoas?
No dia seguinte disse-me:
- O meu marido achou-a muito bonita e simpática.
Aproveitei logo:
- Ah sim? A …… também é muito simpática, só lhe falta um sorriso. Porque não sorri?
- Vou contar-lhe um segredo! - Afinal sempre havia algo de complicado na sua vida, pensei eu.
- É que sabe, rir faz-me muitas rugas e eu tenho de me poupar…
Não pude esconder uma boa gargalhada.
- Então é por isso? Já reparou que o esgar que faz ao cumprimentar as pessoas estende os lábios e em breve vai ter rugazinhas à volta deles? Ria, sorria, é bonita, tem uma família maravilhosa que mais quer? Viva feliz!
Quando entramos no café, ela parecia uma rainha a distribuir sorrisos por todos os lados. Os colegas estavam estupefactos:
- O que é que fizeste à múmia?
- Olha, disse-lhe que as múmias normalmente têm rugas e ficam encarquilhadas.
- Estás a brincar?!? – Perguntaram atónitos.
- Claro, que te parece? – Respondi eu sorrindo.
A partir daí os sorrisos eram canções, trigo lançado com a mão larga da generosidade e da compreensão por todos e entre todos. Algum tempo depois ela foi transferida para a Beira mas mantivemos sempre correspondência até àquele momento em que nos perdemos uns dos outros.
Nunca mais soube nada dela mas penso muitas vezes nesta mulher que não ria porque não queria envelhecer. Eu, que cultivo constantemente a sementeira do sorriso, costumo dizer que a vida nos devolve aquilo que lhe damos: quanto maior for o nosso sorriso, do outro lado a retribuição será, quem sabe, o próprio sol!

Rugas
Se ficasses para sempre
nos olhos que em ti medi
naquele balouçar
de vestal e puta eternamente
serias o sonho prolongado que não há
Mas os anos amiga
os anos que passaram
fizeram de borracha a tua pele
e o desespero das rugas
enfeitou o teu rosto
num rasgo de ti mesma
E desdobras-te em cascatas de gestos
em busca do que foste sem saber
e há qualquer coisa de injusto em tudo isso
porque os meus olhos são da mesma idade
E o tempo esse carrasco lento
fez de nós uma referência
uma memória esconsa do que fomos
E hoje são talvez as tuas filhas
quem desdobrou de ti o alçamento
a graça de garça e o altar de espanto
Mas tu amiga
aqueles teus seios de mármore
que eu mordi de amante
esses roubaram-mos de inveja
o tempo e a lonjura
Por isso recuso ver-te hoje
sem ser nessa memória
Dizem que é assim isto de viver
mas há tudo de cru, injusto e triste
nessa amargura
porque a beleza extrema
nunca houvera de morrer
E tudo o que me estrago
a mim não magoa
que eu nunca contei muito
para o belo que me deste
Sempre vou ser isto
mais coisa menos coisa
cada vez mais velho e mais agreste
Mas tu tinhas direito à eternidade
o teu rosto o teu corpo as tuas mãos
moram para mim ainda e sempre
na ideia em que te guardo
e há qualquer coisa de injusto em tudo isto
porque os meus olhos são da mesma idade
[Pedro Barroso]