Setembro chegava ao fim e os dias tornavam-se maiores, mergulhados num calor que, dentro de pouco tempo, seria sufocante. Por isso, decidimos que a nossa partida teria de ser muito de madrugada, quase de noite ainda; aliás como sempre acontecia nas longas viagens de carro pelo interior de Moçambique. Esperavam-nos 1600 quilómetros entre Quelimane, na Zambézia, até à capital Lourenço Marques (actual Maputo), no sul do Save.
Antes de nos deitarmos, tudo ficou pronto: bagagem, cesto de merenda, garrafões com água e um de gasolina, para além do imprescindível mapa, onde uma linha sinuosa ressaltava o itinerário de uma grande aventura. Viajamos num cómodo Datsun 1200! Até aos limites da Zambézia a viagem foi normal – eram estradas por demais conhecidas. Ao embrenharmo-nos na densa floresta tropical, numa grande extensão ainda virgem, começaram as peripécias. A estrada de terra batida ou de areia solta grossa semelhante à do deserto era percorrida quase em silêncio. Durante muitas horas não nos cruzamos com ninguém. Devido à vegetação cerrada, zona de caça grossa, e ao período de guerra que se vivia, as aldeias indígenas não existiam, razão pela qual não víamos vivalma. Passávamos assim pela onda do medo. De repente, no meio do colchão de areia fofa da estrada foram aparecendo aqui e ali garrafas de cerveja Manica – cheias e bem engarrafadas. Foi uma alegria e enchemos a bagageira com a loira bebida. Mas, alguém alvitrou – “e se é uma armadilha?”. Fez-se um pesado silêncio que reinou até encontrarmos depois de mais de 200 quilómetros por floresta, uma cantina (loja do interior) onde nos abastecemos de tabaco e água.
À porta, bem arrumadinho, descarregava um camião da Manica. Estava explicada a sementeira de tanta garrafa. Com os saltos, algumas grades rebentaram e deixaram cair o seu produto no macio da estrada, não dando sinais ao motorista do que se passava.
Depois de deixarmos Inhaminga a chuva começou a cair torrencialmente. Em breve, o que era veludo passou a ser um inferno lamacento. Mais à frente, quatro ou cinco camiões altos e potentes atolavam as suas grandes rodas sem conseguirem sair do sítio onde estavam. Tal como elefantes pesados e pouco maleáveis, quanto mais os motores roncavam mais as suas “patorras” se afundavam. Ficamos em pânico. Com um carro baixinho e sem a estatura dos outros, que seria de nós? Conseguimos abrir as portas e a água correndo como um rio ficava ao nível do nosso “vermelhinho”. O nosso condutor, também ele experiente de muitas viagens pelo interior, pisando o pé no acelerador soltou o grito do Ipiranga: “Agora ou nunca”! Acreditei que iríamos ser inundados e o carro se quedaria sem movimento, agarrado ao lodaçal como uma lapa. Foram os minutos mais sufocantes da minha vida. Quando abri os olhos, o Datsun estacionara triunfante por cima de uns caniços numa zona mais alta e seca da estrada. Toda esta gincana em poucos segundos, foi acompanhada por palmas dos motoristas dos camiões que nas suas ilhas flutuantes esperavam pelo rebocador.
Já era muito de noite quando pernoitamos em Vila Machado, numa residencial simples e parca em tudo. No entanto o jantar soube-nos como o melhor dos banquetes e a cama foi um pequeno oásis onde o cansaço deu tréguas ao sono.
Por ser feriado, avisaram-nos que poucas lojas ou restaurantes encontraríamos abertos para almoçar; Mas, à socapa, no jantar de véspera, três pãezinhos com bacalhau cozido e um ovo entraram num saquinho de plástico, para o que desse e viesse.
Deixara de chover e o sol estava outra vez no seu pino. Começamos a racionar a água. Às três da tarde a fome era por de mais dolorosa e foi aí, nesse momento, que, umas simples sandes de bacalhau (algumas lascas) e uma rodela de ovo cozido foram consideradas o melhor manjar do mundo.
Ao fim da tarde, encontrávamos civilização – Vila de João Belo – onde nos dessedentámos com o pouco que havia disponível. “Comam tudo o que puderem pois só pararemos em Lourenço Marques” – um conselho prudente do motorista. Já a noite ia alta quando passamos pela terra da boa gente (Inhambane) e às 23h00 fazíamos a entrada triunfal em Lourenço Marques. Depois de vários enganos, metemos pela Avenida de Pinheiro Chagas ao encontro do nosso destino.
Já lá vão trinta anos e nunca mais pude esquecer esta viagem, que foi uma aventura inesquecível.
Maria de Graça Machado
In, Público, 18-5-2002
In, Público, 18-5-2002
A aventura não está fora de nós, está dentro .
ResponderEliminarAbraço.
DIA 25 DE sETEMBRO ERA O DIA DA fRELIMO. Talvez vocês fossem com receio por isso.. Foi mesmo uma AVENTURA. Monhé
ResponderEliminarOlá Monhé
ResponderEliminarDurante a viagem ignoravamos esse promenor. Só soubemos depois e ainda bem, senão teria sido um pesadelo. Obrigada pela visita. graça
E além da boa cerveja Manica, que dizer da Laurentina a 2M a Cuca a Sagres de exportação o bom camarão e tantos outros pitéus tão bons que lá existiam?
ResponderEliminarMoçambique que tantas saudades deixou onde os tempos nunca serão esquecidos.
Lourenço Marques - Beira - Ilha de Moçambique - Nampula - Nacala - Moeda, etc., são coisas que jamais o tempo apagará da memória.
Fica na memória o que de bom e de mau lá vivi que apesar de tudo, as saudades são imensas.
Bjos, felicidades nos dias que vão correndo..
Aqui aprendo de coisas que não conheço e de um lugar que sonho um dia estar.
ResponderEliminarMinha gratidão por isso
beijo
Denise
Este é um lugar que eu gostaria muito de conheçer.
ResponderEliminarAbraços
Histórias que o tempo não apaga e a memória torna presentes...
ResponderEliminarDecerto que há mais de 30 (trinta) anos, talvez 40… Há 30 anos a capital de Moçambique já se chamava Maputo – “Que raio de nome!...”, lembra-se? – e, muito provavelmente, quase de certeza, já não poderia fazer a viagem que nos relata. Ainda durante o período que vivemos sob o governo de transição, mal saíamos de Quelimane tínhamos patrulhas da Frelimo que nos mandavam parar para controlos que os jovens militares (de Kalashnikov a tiracolo) mal sabiam para o que serviam. Espreitavam para dentro do(s) carro(s), aceitavam dois ou três cigarros e depois despediam-se de nós com um “Boa-viagem, camaradas!” em português muito arrevesado…
ResponderEliminarEmbora a Graça não mencione a data da viagem, o “Anónimo” Monhé refere-se a 25 de Setembro - de facto o “Dia da Frelimo”. Uma data que era pretexto para a mobilização dos militares portugueses para manifestações (que nós classificávamos de) folclóricas. Eu participei numa, em Mocuba, em 1972: de G3 a tiracolo (numa das raras vezes – senão a única - em que peguei numa arma) marchei (marchámos) pelas ruas principais da cidade. Lembro-me que ninguém (me) nos prestou a menor atenção… Se a Frelimo celebrasse a data com acções de guerrilha e nessa manhã nos tivesse atacado (hipótese improvável) seria uma tragédia: as armas estavam descarregadas.
Viveu uma aventura. Uma aventura que gostei de ler, sobretudo pelas peripécias que adivinho. Continue. A escrever e a ilustrar os seus relatos com fotografias. A mostrar o país real em que vivemos. Talvez apreensivos, mas no qual acreditávamos…
OláDuarte
ResponderEliminarEsta viagem foi feita el 25/9/72!! Iamos ao juramento de bandeira do meu irmão que foi em 4/10/72. O país estava em guerra( emdeterminadas zonas porque em Quelimane era coisa que me passava muito ao lado). Moçambique nessa altura ainda era Portugal, embora a Frelimo à sucapa festeja-se o seu dia. Esta aventura aconteceu, faz agora em Set próximo 37 anos! Só em 25 de Junho de 1975 Moçambique fica independente e então Lourenço Marques passa a ser Maputo. Só aí. No entanto, era costume dizer-se do "Rovuma ao Maputo" desde miúda ouvi isto, porque se utilizava os nomes gentílicos, da terra. Por isso Quelimane não deixou de ser Quelimane.
Mas em 75, já com a Frelimo vivi um problema..contarei mais tarde. Abraço Graça
Adoro ler estas histórias!
ResponderEliminarbeijo e um feliz final de semana