Era um chaço mesmo… andava porque tinha quatro rodas e um motor, e pouco mais. Tinha uma cor de ervilha cozida e crua porque a variedade de verde misturava-se como se fosse uma salada. Em alguns lados apresentava amolgadelas que lhe conferiam um certo sainete… Os amigos diziam:
- Parece que andou na guerra!
A resposta que recebiam era sempre a mesma:
-Tem estilo, como o dono.
No entanto, simpaticamente, o piloto do tal "bólide" oferecia sempre boleia aos amigos que andavam a butes. Aos que iam atrás recomendava-lhes:
- As portas não abrem bem… mas dêem-lhes uma cotovelada que isso vai…
Não me lembro da marca do veículo, se é que a tinha! O destemido condutor adorava percorrer calmamente a famosa recta que ia desde o Padeiro, ao quilómetro cinco, até à curva para Namacata. Os Fângios faziam corridas por ali, em grande alvoroço e barulheira. Talvez ele gostasse de fazer o mesmo mas o chaço não dava para essas coisas. Quando os outros o ultrapassavam, em altas velocidades, a latinha de ervilhas abanava toda…
Ele mostrava-se indiferente, contemplando a paisagem que, à berma da estrada, era generosa e variada. De um lado nenúfares a perder de vista de encontro ao palmar que confinava com o novo aeroporto, do outro, os extensos arrozais e, logo depois, aquela planície nua ou quase nua, onde se destacava uma velha casa de rés de chão e primeiro andar à beira de um pequeno carreiro que por lá passava a caminho de nenhures…
Andava nestas passeatas quando, vindo do nada, mais um Fângio passou por ele na gáspea. A latinha quase que fez pião! Quando a nuvem desapareceu, notou que uma roda, ziguezagueando, passeava no outro lado da estrada… Riu-se:
- Ias aí todo fresco mas agora bem que vais ter de parar, até te caem as peças!…
Mas antes que pudesse soltar uma gargalhada a sua latinha começou aos solavancos.
- Era só o que me faltava! Será falta de gasolina?
A vontade de rir já lhe tinha passado por completo. Olhou o tablier procurando algum sinal que pudesse indiciar o que se passava. No entanto, por ali, nada funcionava… Por fim o carro lá parou a poucos centímetros de mergulhar nos nenúfares. Saiu a medo, não fosse a lata dar um solavanco final e mergulhar de radiador em riste nas águas. A porta do condutor era a única que se abria com alguma dignidade, “ainda bem”, pensou.
Só cá fora reparou que a sua latinha apresentava um grande desnível…
- Mas, falta-me uma roda! Ah, magana… então eras tu!
Atravessou a estrada a correr e fez sinal ao primeiro carro que passou. Em Quelimane era usual socorrer quem precisasse. Desconhecia-se os assaltos, o carjacking, vivia-se na paz dos anjos.
- Oh homem o que lhe aconteceu? Algum furo? - perguntou o solicito motorista.
- Não, não… faltam-lhe peças… por exemplo esta roda onde estou sentado!

…
De namoro pegado com uma das raparigas mais pretendidas da cidade, esganava-se todo para ter a latinha bem reluzente e fazer boa figura quando fosse buscar a sua amada para passear. Por cima da ferrugem passou um líquido brilhante para lhe dar um ar sui generis. Por dentro imperava a limpeza e um ligeiro aroma de lavanda.
- Hoje levamos a tua mãe (a futura sogra…) e vamos até à praia… - a futura ficou deliciada com tanta simpatia do seu querido. Mas mesmo assim parecia bem fazer-se difícil.
- Está tão abafado, não achas que irá chover? - perguntou-lhe ela reticente.
- Não, acho que não! E se chover até refresca o ar…
- Vou arranjar um lanchezito para levar. Na praia sabe sempre bem…
Já a caminho, na estrada, por entre o palmar, a querida disse-lhe:
- Vem borrasca por aí… olha as nuvens tão negras…
- Se chover são só uns salpicos… - nada podia embaciar o seu entusiasmo.
E já a latinha era atingida pelas primeiras gotinhas que caíam…
- Isto passa já…
As futuras diziam-lhe:
- Não será melhor voltarmos para trás?
- Qual quê! Depois de Coalane já isto passou!
Como estava enganado. Num repente, o céu desabou e a chuva correu torrencialmente. Não se via um palmo de estrada.
As futuras, em coro, disseram:
- Não seria melhor ligares o limpa-pára-brisas?
- Não é preciso, isto passa já… - disse praguejando com os seus botões.
Agarrado ao volante, com o rosto colado ao vidro e de olhos arregalados, tentava vislumbrar a linha estreita da estrada…
Caramba, nunca lhe parecera tão estreita!
Eventualmente, deu a mão à palmatória e, como que aceitando que nada conseguia ver, lá decidiu parar o carro.
- Um momento. - disse enquanto procurava algo no guarda-luvas.
Saiu com um grande pano para limpar os vidros… Trabalho inglório, claro. A chuva caía mais forte ainda. Às tantas, estavam ele e o pano encharcados que nem pintos…
As futuras gritaram:
- Entra, ainda vais ficar doente!
Não teve outro remédio. Quando se sentou ao volante, a água já circulava pelo chão da latinha. As futuras encolheram-se. A querida disse-lhe:
- Liga o limpa vidros!
Ele respirou fundo antes de responder:
- Está avariado - disse numa voz sumida, mais adivinhada do que audível.
Claro que o lanche foi comido em casa com o querido embrulhado num grande cobertor, espirrando de minuto a minuto… As futuras repetiam em uníssono:
-Santinho! Santinho!
…

Uma semana depois, num domingo quente e cheio de sol, havia grande alarido em frente à casa das futuras. O cãozito ladrava, os empregados batiam palmas e a buzina de um carro não parava.
- Vamos à varanda ver o que se passa. - concordaram as duas.
Do outro lado da rua um Datsun vermelhinho brilhava que nem uma cereja madura. Junto a ele, ufano, estava o futuro marido e genro acenando entusiasticamente e dizendo feliz:
- Vamos dar um passeio no meu carro novo? Pode chover a potes, fazer frio ou calor, esta máquina está preparada para tudo!
E estava mesmo… até para a felicidade!