A poesia entrou cedo na minha vida e, pela porta grande, entrou FLORBELA ESPANCA.
A morte é sempre um mistério para nós, eu diria quase um escândalo e, aos quinze anos, parece-nos quase impossível morrer! Apaixonei-me pela poesia desta Mulher e pela sua vida solitária “cheia de amor”… Desde que nasceu, foi uma deserdada da vida: filha de pai incógnito, neta paterna e materna de avós incógnitos! “Queria tanto saber porque sou Eu!” – escreveu.
“Quem me enjeitou neste caminho escuro?” - a procura da sua identidade, do seu próprio caminho, encheu-a sempre de insatisfação. A poesia foi o seu amante mais perfeito, o espaço que a recebia sempre com ternura, onde ela recomeçava depois de cada fracasso amoroso; o recanto onde chorava cada adeus de sonhos perdidos, como a morte do seu único irmão que a marcou dolorosamente; o refúgio onde se escondia de uma sociedade que não a sabia aceitar como mulher moderna, culta, emancipada.
“Altiva e couraçada de desdém/ Vivo sozinha em meu castelo: a dor! / Passa por ele a luz de todo o amor…/ E nunca em meu castelo entrou alguém!”
Era também uma mulher cheia de contradições que não era fácil compreender precisamente porque ela era, e queria ser, uma mulher diferente. De alma complexa, encontrava-se a si própria na sua intimidade, onde ela põe a sua alma a descoberto.
Nasceu a 8 de Dezembro de 1894 e suicidou-se, em Matosinhos, na manhã do seu 36º aniversário, 8 de Dezembro de 1930. Desde Vila Viçosa (Alentejo), onde nasceu, percorre várias localidades no país: Évora, onde conclui os estudos liceais, Lisboa, licenciando-se em Direito na Universidade de Lisboa e, por fim, Matosinhos, no norte do país, onde a revolta a levará à morte, a trágica negação do seu desejo.
As desilusões - três casamentos mal sucedidos, a morte do irmão, seu grande confidente - centram a temática da sua obra na solidão, no sofrimento e no desencanto pela vida. Contudo, há uma forte ligação com a Natureza, através da paisagem da sua charneca alentejana.
Quando em Quelimane (Moçambique) estudava no colégio a sua obra e, depois, mais tarde, lia os seus “Contos”, inquietava-me sempre com a sua alma de mulher e não entendia bem como ela própria se descrevia: “honesta sem preconceitos, amorosa sem luxúria, casta sem formalidades, recta sem princípios e, sempre viva, exaltantemente viva, a palpitar de seiva quente como as flores selvagens da minha bárbara charneca”.
Mal sabia eu que um dia, com a “ reviravolta” da História, seria profissionalmente colocada em Matosinhos. Uma tarde, ao levar o meu filho ao Colégio, passo por uma ruazinha simpática de casas antigas e descubro na parede de uma delas uma placa onde se lia: “Aqui viveu e morreu Florbela Espanca.” Não resisti. Parei o carro e sentindo a mesma angústia com que estudava os seus sonetos, tentei encontrar respostas a tantas interrogações que ficaram pelo caminho.
Olhando as pequenas janelas bem cuidadas (na altura) pensava que dali Florbela teria lançado o último olhar sobre um mundo que nunca a entendeu. E no ar ficava sempre a mesma pergunta: Porquê? Porquê?
Sempre que ali passava (e foram anos a fazê-lo), e mesmo que não parasse, elevava o meu pensamento até ela, incrivelmente com uma saudade como se tivesse sentido a tristeza do sofrimento de uma mulher que, neste mundo, apenas quis “amar, amar perdidamente”.
Há muito tempo que não vou a Matosinhos mas sei que, quando lá voltar, não resistirei a passar por aquela ruazinha quase debruçada sobre as águas; nesse momento, olhando as janelas, ouvirei:
“ A nossa casa, Amor, a nossa casa!
Onde está ela, Amor, que a não vejo?
Na minha doida fantasia em brasa
Constrói-a, num instante, o meu desejo!”.
Florbela Espanca morreu há 79 anos e a sua obra continua a ser lida em todo o mundo, sem esmorecimento. A sua vida é esmiuçada com uma curiosidade, para além da literatura, pela mulher “que no mundo anda perdida, (…) a que na vida não tem norte”.
Foi difícil escolher sonetos para este post. Quereria-os todos! Mas escolhi dois que foram tema de um trabalho que fiz, era eu ainda estudante, sobre esta grande poetisa, enorme mulher.
AMAR
Eu quero amar, amar perdidamente! Amar só por amar: Aqui…além… Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente… Amar! Amar! E não amar ninguém! Recordar? Esquecer? Indiferente!... Prender ou desprender? É mal ? É bem? Quem disser que se pode amar alguém Durante vida inteira é porque mente! Há uma Primavera em cada vida: É preciso cantá-la assim florida, Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar! E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada Que seja a minha noite uma alvorada, Que me saiba perder… pra me encontrar… | ALMA PERDIDA
Toda esta noite o rouxinol chorou, Gemeu, rezou, gritou perdidamente! Alma de rouxinol, alma da gente, Tu és, talvez, alguém que se finou! Tu és, talvez, um sonho que passou, Que se fundiu na Dor, suavemente… Talvez sejas a alma, a alma doente Dalguém que quis amar e nunca amou! Toda a noite choraste… e eu chorei Talvez porque, ao ouvir-te, advinhei Que ninguém é mais triste do que nós! Contaste tanta coisa à noite calma, Que eu pensei que tu eras a minh’alma Que chorasse perdida em tua voz!...
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