Lembrava uma passa preta, encarquilhadinha como esta, com o tronco inclinado para a frente a caminho dos joelhos. Sempre a conheci assim. Não era uma preta bonita, pelo contrário. A primeira vez que vi no cinema o filme “E.T.” a minha memória associou logo aquele rosto ao da Joaquina Malalo. A princípio tem-se medo, mas depois desperta ternura.
Cirandava à volta da Igreja vezes sem conta, tentando (e conseguindo) manter a ordem a todos os níveis. Parecia uma coruja à volta de uma candeia de azeite. Era, sem dúvida a guardiã do templo. Corria com a criançada que ia brincar ao berlinde ou jogar à neca nos dois pequenos claustros laterais da Igreja. Varria-os constantemente, tanto cá fora como dentro da própria igreja. Quando as irmãs franciscanas chegavam para decorar os altares e fazer as duas limpezas semanais, já a Joaquina tinha tirado as flores secas das jarras e posto água limpa em todas.
Com o tempo, a Igreja de Nossa Senhora do Livramento tornou-se pequena e com poucos espaços disponíveis para as reuniões de vários movimentos e para o exercício da Catequese.
Tinha um cartório onde se podia encontrar permanentemente um sacerdote (no tempo em que estes estavam “ao serviço” do povo para os ouvir e confortar nas suas penas) e uma sacristia onde, curiosamente, havia uma fonte em forma de concha. A seguir ficava a sala ”multi-usos” - como eu lhe chamava. Saíam uns e entravam logo outros, tudo de enfiada. Nessa sala, a par de uma mesa comprida coberta com tecido vermelho escuro, adamascado, havia uma falange de santos de séculos passados que tinham sido retirados “da vida activa” devido ao seu estado de conservação: zarolhos, decepados, manetas, enfim, quase dantescos. Quantas vezes em reuniões ali realizadas, eu sentia que estava a ser vigiada por aqueles olhares distorcidos e vesgos. Tiravam-me um pouco do sério, devo confessar. Ao lado localizava-se um pequeno compartimento, com saída para o exterior, onde outrora tinha existido uma lojinha que vendia santos, medalhas, terços e pagelas. A modernidade (e necessidade) ordenou que aquele espaço fosse substituído por uma funcional casa de banho.
Do outro lado, pegado ao cartório, ficava um pequeno salão que esteve muitos anos cedido ao Centro Juvenil de Quelimane. Antes tinha funcionado como espaço para pequenas exposições e convívios.
Era este o reino da Joaquina Malalo, que tinha dois amores (ainda não se falava no Marco Paulo…). Quantas vezes a surpreendi, quando a Igreja estava vazia, em frente a uma lindíssima imagem do Sagrado Coração de Jesus, benzendo-se dúzias de vezes e batendo com a mão no peito; murmurava algo que nunca entendi. Dali saltava para o altar de Santo António, seu amor maior, e com os olhos em alvo, parecia ficar em êxtase.
A Joaquina falava mal o português e tinha uma deficiência na fala que ainda complicava mais o seu entendimento. Utilizava muito os gestos faciais, as mãos e os ombros. Quando ainda assim não chegávamos a nenhuma conclusão, virava-nos as costas deveras zangada.
A Joaquina morava longe de Quelimane, quase ao lado de Namacata, uma pequena povoação que era a primeira paragem de comboio quando se viajava de Quelimane para Mocuba, isto é, a 12 km da cidade! Pois ela calcorreava a pé todos estes quilómetros, madrugada ainda, para chegar a tempo de abrir a Igreja antes da primeira missa da manhã. À noite, regressava à sua palhota depois de missa vespertina. Às vezes, as pessoas condoídas davam-lhe boleia não esquecendo as suas trouxas que nunca largava. Eu era uma das motoristas de ocasião. Numa dessas viagens, nas suas parcas palavras, disse-me: “António, santo no céu; António, santo na terra!”
E eu pensei logo: queres ver que santo António lhe apareceu e teve uma conversa com ela!
Quis desvendar o mistério.
- Quem? Santo António da Igreja? - Olhou para mim como quem diz, mas és burra ou quê?!
- António, santo, teu pai. – disse-me zangada batendo com os pés.
- Meu pai? E porque é ele santo? - estava intrigada…
- António, santo da terra, dá comida à Joaquina: arroz, milho, leite, pão, tudo que precisar. Às vezes também dá boleia.
O meu pai tinha um estabelecimento comercial em Namacata e eu conhecia bem o coração “deste” António, capaz de ajudar todo o mundo.
Quando o tempo estava de chuva e trovoada, a Joaquina dormia dentro da Igreja, com a autorização do padre. Com a idade e as dificuldades que a Joaquina ia apresentando, o Padre Santos autorizou-a a mudar-se definitivamente para a Igreja e deu-lhe como quarto - o que haveria de ser? - o “multi-usos”! Mas esqueceu-se de nos avisar.
Na primeira reunião depois do “alojamento”, estava eu a ler a acta (era secretária de um movimento), quando tenho a nítida sensação que alguém me olhava. Devo estar a ficar louca, agora com medo dos santos mutilados… Levantei os olhos do livro das actas e vi uma cara diferente no meio dos “desgraçados”, sorrindo para mim. Dei um grito e deixei cair tudo o que tinha nas mãos. Os outros olharam também e gritaram: “Ai, o que é isto?”
O Padre Santos ria-se enquanto dizia:
- Vá Joaquina, sai daí. Este sítio é só para dormires. – E só então nos explicou a sua decisão, com a qual concordamos plenamente.
A Joaquina morreu de velhice, uma noite, dentro da Igreja e junto ao altar de Santo António.
O Padre Santos não permitiu que ela fosse para a casa mortuária. Foi velada ali na “sua”igreja, com missa de corpo presente, muitas flores e muitas, muitas lágrimas de todos aqueles que lhe queriam bem.
Quando ia à Igreja e olhava a estátua de santo António, parecia-me ver, nas sombras, a cara de E.T. da Joaquina Malalo que, tal como a personagem do filme, parecia querer-me dizer, qual apogeu cinematográfico: “cheguei a minha casa”.
Creio, pela tua belíssima descrição, que se trata de uma pessoa real. E descreve-la de forma realista e,simultaneamente,muito terna e respeitadora.
ResponderEliminarMais uma vez...adorei ler-te!
Minha Terra de Encanto...
ResponderEliminarFiquei feliz por seres a primeira a comentar. Sim, a Joaquina existiu mesmo, como todos aqueles de quem falo aqui. Teria muitas histórias dela para contar. Resolvi escolher esta por ser dos seus últimos tempos de vida. Um beijo e uma noite feliz Graça
E quem pode negar que Joaquina Malalo tenha sido uma pessoa muito feliz? Feliz e realizada. Como o ser humano pode, ao buscar o poder, a fortuna, a posse de bens, afastar-se tanto da real felicidade. História cativante esta Graça. Como só as pessoas sensíveis, como você, conseguem reproduzir. De novo dou-lhe parabéns pelo texto e por existires.
ResponderEliminarBeijo.
Graça, lindos momentos e posso sentir q vc descreveu tudo isso com imensa saudade.
ResponderEliminarbeijos e linda noite prá vc!
Graça;
ResponderEliminarFiquei emocionado, mas também encantado com a história (real) que aqui nos contaste.
Há pessoas, como a Joaquina Malalo, que têm uma existência simples, rotineira, quase anedótica,... mas quando partem é que sentimos o quanto relevo e importância elas tiveram, não só para nós, mas para toda a comunidade, porque de tarefas que nós achavamos simples, ninguém mais conseguiu repetir e realizar essas tarefas...
Daí a grande importância de todas as Joaquina Malalo do Mundo.
Bela homenagem prestaste a uma grande mulher e a Joaquina te agradece.
Parabéns Graça.
Osvaldo
Acho que o que escreve, é verdadeiramente maravilhoso. Obrigado, Monhé
ResponderEliminarGraça, quantas Joaquinas devem existir nesse mundo, concordas?
ResponderEliminarMas a sua descrição é única,maravilhosa. Parabéns!!!
Fiquei por aqui e já estou te seguindo.Obrigada pela visita e por estar no meu blog.
Um beijo
Graça, voltei para te dizer que "amei" sua interpretação sobre o poema de Lya Luft que postei. Acredite, foi de grande valia para mim.
ResponderEliminarUm beijo e obrigada!
Simpática Amiga:
ResponderEliminarÉ fascinante a forma como escreve as suas recordações em África. Li, com atenção e delícia numa prosa fabulosa de causar calafrios de pureza e encanto.
Os meus sinceros parabéns.
A Joaquina marcou-a, estou certo, na sua "maravilhosa" cara de E.T. Sabe, também me recordou o seu brilhante texto tempos de outrora que vivem fantasiados em tudo o que escrevo e dou vida.
Excelente! Lindo.
É uma escritora de referência que respeito imenso, considero e estima.
Pura e simplesmente, divinal, entende...? PERFEITA!
Beijinhos de uma amizade que gostaria que continuasse porque o seu talento e génio é admirável.
Sempre a lê-la atentamente pela ternura dos seus fantásticos textos maravilhosos, duma doçura extrema...
pena
OBRIGADO pela sua simpatia que agradeço de coração.
Bem-Haja, terna amiga!
MUITO OBRIGADO!
Bela descrição de sua Terra.
ResponderEliminarVim retribuir a sua gentil visita em meu blog.
E dizer que ele estará sempre de portas abertas a lhe esperar.
Sua amizade é muito importante para mim.
É sempre bom receber pessoas maravilhosas como vc. em minha doce casa virtual.
Com muito carinho e um forte abraço.
Sandra
xi patrão, fiquei com a lágrima no canto do olho...
ResponderEliminarTão bonito! Tão comovente! Beijinhos. Tá-tá
belas narrativas
ResponderEliminarBonita narrativa!
ResponderEliminarEstas personagens reais que vão surgindo nas nossas vidas, por aqui e por ali, fazem-nos acreditar, definitivamente, na ficção.
Um beijo
Graça...
ResponderEliminarTeus textos me emocionam!
Quem esteve naquela bendita terra jamais a esquece! Há sempre algo de nós que lá ficou!!!
(Tantas vezes dancei esta marrabenta!)
Beijos...
Oi Graça, gracinha.... kkk
ResponderEliminarSenti nostalgia no seu texto, uma saudade sem fim, uma saudade gostosa.... puro encanto... bjs
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarOlá Graça Pereira!
ResponderEliminarLendo um comentário a um post do igualmente belo blog Renascendo, de minha amiga Lau Milesi, pressenti sua grande capacidade literária.
Vim conferir e não deu outra. Deparei-me com uma literatura peculiar e envolvente. Além disso, é muito bem formatado e nos oferece uma inusitada excursão sonora. Parabéns!
Um abraço!
Olá!
ResponderEliminarNão vou comentar porque iria cair em repetiçao.
Apenas te q1uero dar os parabens pelo grande sucesso do blogue.É o blogue mais bem sucedido que
conheço.
Um beijo
POTT
Olá Graça Pereira!
ResponderEliminarLendo um comentário a um post do igualmente belo blog Renascendo, de minha amiga Lau Milesi, pressenti sua capacidade literária.
Vim conferir e não deu outra. Deparei-me com uma literatura peculiar e envolvente. Além disso, o 'Zambeziana' é muito bem formatado e nos oferece uma inusitada variedade sonora. Parabéns!
Um abraço!
olá, Graça!
ResponderEliminarque texto lindo, cheio de carinho, pelo lugar, pela Joaquina!
a nostalgia faz bem ao coração.
obrigada pela sua visita, seu comentário, viu que combinação ótima de frutas, e diz que faz bem para a memória - o que estou precisando - rsrsrs
fica com DEUS!
bjkinhas....
Saudosista e criativa
ResponderEliminarSempre tão cheio de detalhes seus dizeres que me fazem sentir e conhecer mais e mais vc e seus lugares.
................................
omentando o comentário
Isso Graça,colocar ao sol,,,,,energia que nos abraça e aquece e renova.
é isso q aconteceu.......colocando a magoa "ao sol" vi com claresa o que devo fazer e já estou no caminho
Sua presença sempre me aquece
grata
Denise
olá Graça
ResponderEliminarque história tão terna e tão bonita,e como essas coisas ficam na memória da gente até ao fim da vida. A África transporta essa magia,
abráço
josé
De quem é a música "Eu só estou bem aonde não estou..."
ResponderEliminarEu não a conheço!!! :P
Olá Graça.
ResponderEliminarAdorei conhecer a Joaquina Malalo.
A tua narrativa é tão perfeita, que a consigo imaginar.
O carinho, que pões nesta discrição é comovente.
Também se nota a saudade que tens, de África, dessa vida e desse tempo.
Amiga, as recordações fazem parte da nossa vida.
Umas boas outras menos boas.
Mas a magia, do cheiro de África está patente, em todas as tuas palavras.
Continua, a dar-nos a conhecer, alguns dos teus episódios e a maravilhar-nos com as tuas narrativas.
Jinhos e continuação de boa semana
Obrigado pela visita
ResponderEliminarHoje um pouco mais tarde mas nunca esquecida...
Se sentires o perfume de jasmim...
Ou qualquer coisa assim...
Saiba é minha mensagem...
Tentando te conquistar...
Tentando te buscar...
Um beijo
Olá, amiga!
ResponderEliminarA sua prosa é boa. Gosto dela.
Bjs
uma graça esse pegeoux 3 vermelho
ResponderEliminarserá que estou certo? creio que sim!
sim, bela viajem.
abraços,
Gustavo
Não há sociedades perfeitas nem cidades perfeitas. Mas, pese embora a suavização que as saudades e recordações operam, Quelimane tinha um sortilégio especial. Ali, as pessoas não eram números anónimos; todos tinham um nome e desempenhavam um papel único e "insubstituível".
ResponderEliminarE havia inúmeras figuras que se destacavam pela sua originalidade e que perdurarão, por isso, para sempre na nossa memória. A Joaquina era um desses ícones que descreves com mestria.
Beijocas.
Graça, por vezes os últimos são os primeiros!
ResponderEliminarNão podia passar sem saudar-te e mostar-te a minha admiração com a forma como descreves, estas figuras singulares da vida por ti vivida.
Esta Joaquina Malalo, merecia bem o epíteto 'de estar na graça, para merecer certas pobrezas'!
Um beijo, Graça.
Carlos Gonçalves
Munhamede:
ResponderEliminarTens razão quando afirmas que Quelimane tinha um sortilégio especial. Nós, desde pequenos aprendemos a amar todos aqueles que passaram ao nosso lado. A Joaquina foi alguém que eu acompanhei de muito perto. Pudesse eu, aqui neste blog, homenagear todos aqueles que merecem.Um beijo Migá
Lindissíma descrição e que bela homenagem prestada á Joaquina.
ResponderEliminarBjs
Parabéns, pela belíssima narrativa.
ResponderEliminarAbraços
Hugo
Histórias lindas e ainda por cima verdadeiras!Deve ter uma vida linda de histórias por isso esperamos mais e mais !
ResponderEliminarBjs Zé Al
A maneira de contar é o Máximo
ResponderEliminarestas palavras fazem recordar momentos já adormecidos vim de mocuba com 12 Anos em 1974
Cesário Fernandes- cesariofernandes@gamil.com
Olá Cesário
ResponderEliminarFiquei contente com a visita de mais um zambeziamo e da sua terra(Mocuba) tb tenho histórias(verdadeiras) para contar. Volte sempre. Um bj Graça