Era um Agosto demasiado quente e a estiagem tornava a irradiação mais intensa e a natureza um pouco murcha. Telefonaram-me a comunicar o falecimento do pai da senhora doutora, muito vip-vip, e como estava muito pessoal de férias era necessário que eu fosse representar os serviços e avisasse o maior número de colegas vip da vip. O calor do meio-dia amolecia-me sem apetecer sair do ar condicionado. E aonde é que eu iria buscar flores àquela hora? Lembrava-me da recomendação: uma coroa grande e bonita, não olhe a preços… As considerações que estas circunstâncias me pudessem sugerir não me impediram que fosse cumprir o meu “dever”. Calcorreei todos os lugares onde pudesse encontrar algo a condizer com a categoria do finado. Consegui muitos e variados verdes, a exuberância da natureza em Quelimane nunca faltou, mas poucas flores. Ainda assim, com o entrançado da larga fita em dois tons, a coroa ficou cinco estrelas. Quando cheguei à Igreja, havia dois funerais, isto é, dois velórios. Um não tinha ninguém à volta e apenas uns raminhos a tombar com o calor faziam “guarda de honra”. Do outro lado, o defunto tivera melhor sorte (se bem que eu pensasse que ele se estaria borrifando para tudo aquilo) muita gente a chorar, com ramos de muita boa qualidade sim, porque tudo isso pesa na classificação a atribuir a cada funeral: classe A, B, C e os normais. Pesadas e pensadas estas conjecturas, não duvidei mais: o pai da dita senhora era aquele que levava um jardim atrás de si. Com algum esforço peguei na grande coroa e depositei-a aos pés da urna sob o olhar desconfiado das pessoas presentes. Fiz de conta que não era comigo. Baixei a cabeça numa ligeira oração e saí para apanhar fresco e esperar pela vip-vip para lhe apresentar as condolências em nome do serviço. Chegou mais fresca que eu. “Sabe, fomos descansar um pouco, tem estado muito calor”. A quem o dizia…. Mas qual não é o meu espanto quando ela, o marido e mais alguns elementos da família se dirigem para o triste abandonado… Caiu-me a alma aos pés. E as flores? E a coroa? O que é que eu faço? Como o vento da monção rodopiei rapidamente para a direita onde o funeral estava prestes a sair.”Dá-me licença, por favor deixe-me passar”. Reconheceram-me: aquela que tinha posto a grande coroa aos pés do seu familiar. Abriram caminho. Peguei na coroa calmamente e retomei a cantilena: desculpe-me. Dá-me licença? Senti dezenas de pares de olhos em cima de mim. Não tinha outra saída... Com um ar pesaroso fui colocá-la aos pés a quem estava destinada. A vip-vip olhou-me agradecida e sorriu: “Eu sabia que vocês não se esqueciam”.
Fiz um esgar e recolhi-me ao banco mais escondido. O tropel do lado aumentava e eu já via os familiares do outro entrarem por ali dentro e apontarem-me: Foi a menina que roubou as flores do nosso querido… A cabeça zumbia-me e sentia os pés pregados ao chão. A doutora perguntou-me: “Quer vir connosco?” Entrei em pânico. Não, muito obrigado ainda tenho de passar pelos serviços. Imaginava já a contenda que seria no cemitério cada um a puxar pela coroa e todos a gritar: “é nossa, é nossa”!
Nota: Não é história, aconteceu mesmo!
Olá,Feiticeira!
ResponderEliminarO Cortejo dos mil desocupados é reservado ao pequeno empregado,ao indivíduo medíocre,à consciência desbotada,que não teve a habilidade de suscitar uma inveja nem força para provocar um ódio.O belo funeral é reservado aos imbecis e aos velhacos dos quais se diz:«Não tinha um inimigo».No funeral de Baudelaire contavam-se trinta pessoas,no de Willy,dezanove,no de Óscar Wilde,sete..
Fico a aguardar a 2ª parte da sua comédia italiana.
Quanto ao seu livro,penso conseguir imagina-lo, tal como a imagino a si.
Admiro a sua coragem.Acho que escrever um livro é logo à partida uma vitória,porque um dos meus sonhos era precisamente escrever um livro, mas, para concretizar um sonho, não basta apenas imaginá-lo.É preciso foco,competência e vontade para que ideias e pensamentos se concretizem..
Boa noite Graça,é bom senti-la..
POTT