quinta-feira, 9 de abril de 2009

Nove de Abril - Batalha de La Lys


O Velho Meneses

Em cada nove de Abril as ruas de Quelimane enchiam-se de um movimento desusado com a venda das miniaturas de capacetes de soldados que grupos de raparigas, convidadas para o efeito, colocavam na lapela de homens e senhoras. Desde que me lembro comandou sempre estas campanhas o velho Meneses, antigo combatente da Grande Guerra e, se não me engano, era ele que estava à frente do movimento da Liga dos Combatentes da Grande Guerra. O produto da venda dos simpáticos capacetes revertia pois para esta Liga. Nesse dia, o velho Meneses brilhava da cabeça aos pés. O peito inchado faiscava com o sol a bater nas diversas condecorações que saíam à rua neste dia e em ocasiões importantes e solenes. Recordo-me de um Presidente da República em visita a Moçambique, à chegada ao aeroporto de Quelimane, fazer continência ao antigo combatente que, orgulhosamente, exibia as suas medalhas. Intrigada, quis saber a razão de tal gesto e disseram-me que ele possuía uma das mais altas condecorações do País. Neste dia, todos anos enquanto ele foi vivo, contava-nos sempre o que acontecera na Batalha de La Lys. Era tão empolgado na sua narração que nós nos sentíamos também por de trás das trincheiras na velha Flandres, provavelmente ouvindo o tiroteio da triste escaramuça onde os portugueses foram derrotados. “Eu lutei ao lado do soldado Milhões”- dizia vermelho de emoção. “Soldado Milhões?”- perguntávamos nós curiosamente. E lá vinha a história completa.”Nós estávamos a perder desastrosamente. Foi a maior derrota depois de batalha de Alcácer Quibir, mas, apesar de tudo, os portugueses ofereceram uma valente resistência que não foi muito valorizada por causa da derrota sofrida. Mas por causa desta resistência o colapso não foi total. Então, o Aníbal Milhais que estava ao meu lado na trincheira, sai dela desesperado, e com uma metralhadora nas mãos enfrenta as colunas alemãs que vai encontrando, permitindo assim a retirada de vários soldados portugueses para uma posição mais defensiva. Deambulando pelo campo de batalha o Milhais encontra um médico escocês quase afogado num dos pântanos. Agradecido ao soldado português conta ao exército aliado a bravura deste homem. Quando regressaram ao acampamento português, um dos comandantes disse-lhe: ”Tu és Milhais, mas vales milhões.” E assim ficou conhecido o soldado Milhões. Nós já sabíamos esta história da frente para trás, de trás para a frente e, quando ele se enganava, tínhamos a ousadia de lhe lembrar algum detalhe que ele esquecera. Passando o lenço pela testa, desculpava-se: ”É do calor”.

Era um dia muito cheio este nove de Abril. Ao fim da tarde havia uma visita ao cemitério da cidade para depor ramos de flores nas campas dos antigos combatentes, seguida de uma missa onde estavam presentes as mais altas individualidades civis e militares. Ao lado do altar, em lugar de destaque, o velho Meneses com a bandeira portuguesa nas mãos, pensaria de certo que teria valido a pena no passado ter sido um dos combatentes portugueses da Batalha de La Lys.


Nota: o velho (que digo com todo o respeito) Meneses vivia com a sua família numa casinha muito peculiar, quase de bonecas, junto à Central eléctrica. Adorava passar por essa rua e admirar aquele pequeno edifício, único em toda a cidade. Hoje, tenho pena de o não ter fotografado. Não sei se ainda existirá. Na minha memória está fresco e recomenda-se.

1 comentário:

  1. Olá,minha amiga do "Carreiro Mágico"!

    Porque é que quando abandonamos uma coisa ou uma pessoa,ou quando a coisa ou a pessoa nos abandona,continuamos a vê-la durante anos e anos como era no momento da separação?Por que motivo a nossa fantasia se recusa a acreditar que o homem envelhece,a cidade se transforma,a paisagem se renova e o cadaver se decompõe?
    A fantasia não se sujeita a acompanhar a metamorfose das coisas longínquas que ainda amamos.
    Dois amantes envelhecem,ficam feios.A sua juventude desapareceu:a beleza pertence ao passado;mas eles vêem-se ainda jovens,ainda bonitos;e essa frigida amizade isenta de conteúdo sexual que,com a velhice,substitui o amor,pensam eles ,iludidos,que ainda é o amor de outrora.
    Minha amiga,se soubssemos imaginar a transformação das coisas distantes no espaço,não nos esporíamos tão frequentemente à desilusão do regresso e, em vez de voltarmos,era preferível sofrer desse esquesito mal que é a saudade.

    Boa noite feiticeira do "Carreiro Mágico"
    Boa Pascoa..
    POTT

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