Hoje, o sol voltou a fugir. Tem feito no céu, por estes dias, um ballet de Primavera. O verde do meu quintal está molhado e as árvores da minha rua despejam grossas lágrimas pelo asfalto. Nada convidativo para sair. Resolvi continuar as minhas arrumações do passado. Alguma vez estarão arrumadas? Não creio. Peguei numa caixa grande de cartão onde há tempos enfiei tudo o que um dia me interessaria ver: cartas, bilhetinhos, postais, recortes de tudo e mais alguma coisa e fotos ainda não organizadas. É que o tempo não dá para tudo! Chamo-lhe a caixa da ternura. Tem dentro sorrisos, fios de sol, venturas, lágrimas, beijos e saudades. Não é uma caixa qualquer. Tem margaridas pintadas por fora que colheram noutro tempo todo o ouro do sol. Pego primeiro nas cartas. Há gente que já partiu mas continua a falar-me de tanta coisa que, ainda hoje, preciso dessas palavras para caminhar. Não é uma questão de insegurança ou de solidão. O que dizem é tudo tão actual que pareceria um conselho para cada dia da minha vida de hoje. A amizade não tem um tempo, não cheira a bafio e não fica nunca fora de moda. Eis a primeira carta: “Numa palavra amiga se encontra, tantas vezes, o tal atalho na busca do ideal…” Sempre guardei as tuas cartas por mil razões. A nossa amizade já vem da geração dos nossos pais, somos mulheres fortes, de fé, mas tantas vezes aos pés de uma cruz… Embrulhamos a nossa dor num papel chamado alegria e dos nossos trapos ainda conseguimos fazer mantas para tapar o frio dos outros. Ainda bem que continuas no meu caminho. E esta? Não é uma letra familiar. Uma folha de bom papel, num tom cinzento claro: ”Nós assustamo-nos com as dificuldades mas, depois, verificamos que as coisas se resolveram melhor do que temíamos. Claro que em nós tudo se interliga: a fé com a saúde, a disposição com a meteorologia e a sensibilidade com a inteligência”. Tem vinte anos esta carta e não me lembro nada da pessoa que a escreveu. Contudo, sei que nessa altura passava por uma depressão pela morte da minha mãe. Outra: “A felicidade está dentro de nós. Somos muito mais importantes do que aquilo que nos acontece”. Esta é muito, mas mesmo muito mais antiga. De alguém que me conhece desde a minha juventude e que me viu crescer por dentro e por fora. E o que é isto? Papel grosseiro, quase de embrulho… São umas quantas! ”Comadra: Aqui estamos a passar bons, não há nada do mal. Sua afilhada continua com a 4ª classe. Este ano era para passar para a 5ª mas não passou. Peço à comadra para comprar um livro pequeno, dicionário, para ela. Chuva aqui não pára desde o dia 24 de Dezembro até hoje, não tem um dia de não chuver. No ano passado passei todo de miséria visto andei a receber sempre falecimentos das famílias… Cumprimentos senhora grande. Um forte abraço sua afilhada e outro sempre seu compadre, Zacarias”. Penso no meu compadre negro, tão educado, sempre tão honesto… Recordo o dia em que ele me foi convidar para ser madrinha da pequena Esperança. Estava numa aflição e eu não entendia o motivo da tanta atrapalhação:
- Vá Zacarias, há algum problema?
- É que padrinho vai ser Zé Manel.
Entendi logo o dilema. O Zé Manuel era também negro e motorista dos serviços.
- E daí? Acho muito bem a escolha. Ele é seu amigo, seu vizinho e bom homem, não podia ter escolhido melhor.
Respirou fundo como se um peso tivesse saído de cima dele e voltasse à vida. Mas… ainda havia um mas:
- É que, como o baptizado é na Igreja da Sagrada família o almoço vai ser na minha palhota.
- Ah, na sua casa, tudo bem.
Não, ainda não estava tudo bem. O Zacarias torcia as mãos e pensava que a menina não percebia nada da vida nos arredores mais necessitados da cidade. Como se enganava! Foram cinco anos intensivos a trabalhar em grupos nos aldeamentos indígenas. Decidi abrir o jogo:
- Zacarias, vamos fazer assim. O vestido da minha afilhada, as despesas do baptizado e o Bolo mais o champanhe, pago eu. Amanhã vou a sua casa para vermos como organizar a festa; e diga ao Zé Manel para aparecer também.
Nem por nada queria deixar o padrinho de fora de toda esta movimentação. O suspiro foi mais forte ainda, finalmente a menina entendera tudo. Ainda que por caminhos diferentes, procuramos todos o mesmo: sermos felizes. E havia felicidade no rosto do Zacarias. Quando o visitei no dia seguinte vi logo a exiguidade da pequena palhota e as fracas condições. Ele olhava-me de soslaio a estudar as minhas reacções. Disse-lhe:
- Vai ser muito bom!
Espanto, espanto, espanto na cara dele e do padrinho. A menina devia estar louca…
- Vamos fazer assim, como está muito calor e bom tempo pomos a mesa aqui fora debaixo destas sombras bem boas. Eu trago as toalhas que têm de ser branquinhas e o Zé Manuel vai ao Refeba alugar a loiça e os talheres, é a sua prenda.
E o padrinho acrescentava:
- Também posso trazer o vinho e as laranjadas.
Mas o Zacarias ainda tinha uma última questão a pôr:
- E o que faço de almoço?
- Isso é que não custa mesmo nada. Tem tudo à volta da sua casa.
E olhava a pequena horta, farta e bem cuidada e os galináceos que andavam por ali à solta debicando tudo o que encontravam:
- Galinha assada à cafreal, arroz de coco e salada de alface com tomate, quer melhor?
Sorriu, num sorriso que tocava a sinos de catedrais submersas nas suas necessidades.
- Então, posso convidar o senhor padre? - perguntou a medo.
- Pode e deve!
Explosão total. Ia ter uma festa em grande na sua casa, como toda a gente.
Foi um dia lindo Zacarias! Estava tudo tão bonito… A pequena Esperança dormiu a sesta no meu colo, embalada pela aragem que passava pelas velhas árvores onde ela cresceria e se faria mulher.
Não pude acompanhar todo o seu crescimento, você sabe Zacarias… a história, os tempos, a distância… mas não deixei de ser a sua “comadra” e muito menos a madrinha da pequena Esperança. E quando as notícias me chegaram assim de chofre uma atrás da outra, eu pensei que a vida tinha sido injusta consigo, Zacarias: ”Não sei se sabes, morreu o Zacarias e também a tua afilhada ao dar à luz um filho”. Parei diante desta memória. Já passaram uns anos sobre esta notícia mas é sempre como se a tivesse recebido hoje. Num minuto descubro que passou uma vida e na lucidez deste momento penso que algumas vezes vivi a correr. Queria ser apenas a água de um rio que corre lentamente por entre lírios e ser, de vez em quando, uma ave que abre asas e num instante encontra o sabor dos dias que passaram. Para tudo é preciso tempo. Mas às vezes descobrimos, se calhar demasiado tarde, que houve um tempo em que esquecemos as causas que nos confiaram. Zacarias, não é chuva que cai nesta sua última carta… são lágrimas de quem podia ter feito mais e não fez! Um dia, Zacarias, havemo-nos de encontrar, sem preocupações do sítio onde vai ser a festa e qual a ementa que havemos de escolher. Certamente nesse dia descobriremos que afinal fomos fiéis à amizade, à alegria daquele dia em que a Esperança se baptizou, ao abraço da despedida e acredito então que haverá outro tempo para nós no qual colheremos todos os sonhos semeados, como as margaridas da caixa que fecho neste momento.
Olá minha amiga do Carreiro Mágico
ResponderEliminarQue coisa, essa saudade que mexe com nossas percepções de realidade... E já que tudo são só percepções, nunca haverá a morte de facto, pois a presença é sempre percebida por quem ama. E quem ama não sente ausências, senão um aperto; uma saudade que sempre mantém vivas as percepções.
Bjs do seu
POTT
Meu Amigo
ResponderEliminarObrigado por ter percepcionado a dimensão da palavra saudade! Bj Graça