quinta-feira, 21 de maio de 2009

Schwarzenegger do Chuabo


As palavras e as recordações são como as cerejas que hoje comi ao jantar: vêm umas atrás das outras. E é de noite que a ave da lembrança vem fazer ninho no meu coração e me leva com as suas asas, no meio deste silêncio, a outras paragens. Não quero deformar imagens, acontecimentos e tantos episódios que aqui relato. Tento ser fiel e, para isso, subo ao terraço da minha alma e olho o infinito à procura, talvez, de mim própria. E espero. Noites longas, tantas… E com o vento suave da memória chegam as peças do cenário que eu levanto como se fosse um baralho de cartas.
Tínhamos ido, o grupo habitual, aos arredores de Coalane distribuir as senhas para as refeições da semana, pão e alguma roupa aos carenciados que estavam a nosso cargo. Eu era a única que tinha carro, bem pequenino por sinal: um Fiat 500, vermelhinho como as ditas cerejas. Nessa altura, havia um agente da polícia de viação que andava numa moto potente que era o Schwarzenegger lá do sítio. Quase dois metros de altura, largura de um bloco de cimento e um rosto patibular. Todos tinham receio porque o senhor não se fazia rogado para passar multas aos mais incautos e desprevenidos. Diziam que por detrás daquela máscara não havia um coração. Junto à estação de serviço que ficava do lado direito quando se entrava na cidade (uma das últimas a ser construída) o agente mandou-me parar. Ali perto existiam meia dúzia de palmeiras que os corvos, não sei porquê, utilizavam como ninhos. Grasnavam todo o dia que era uma perdição. Ora nesse momento o coro silenciou-se, talvez atento ao que se iria passar.
- Encoste aí o carro menina e mostre-me os seus documentos.
Fazíamos companhia aos corvos num silêncio de morte. Abriu-me a porta do carro e mandou-me sair. Como o gigante olhando Golias perguntou-me secamente:
- Conhece a lotação da sua viatura?
- Claro, senhor Guarda, são 2 lugares!
- Ah, então não é por ignorância!
Afoitamente respondi-lhe:
- Não, não, é por necessidade.
As minhas amigas quase sumiam por debaixo dos pequenos bancos. Rodopiou os calcanhares e direito que nem um fuso dirigiu-se ao outro lado; abrindo também a porta executou o mesmo cerimonial:
- Façam o favor de sair uma a uma.
Era escusado dizê-lo, ali entrava-se de calçadeira e saía-se de saca-rolhas. Como quem conta limões qual vendedor do mercado que até ficava ali perto, começou:
- Uma, duas, três, quatro, cinco e seis.
E voltando-se para mim perguntou ainda mais exaltado:
- Que me diz a isto menina?
- Que somos elegantes. - respondi prontamente.
Alguém abafou uma gargalhada.
- Lamento mas vou passar-lhe uma multa!
E punha o livro das famigeradas multas em cimo do capot do meu “Boguinhas”.
- Como entender senhor guarda, na certeza porém que amanhã voltaremos a fazer o mesmo, a não ser que o senhor faça a amabilidade de nos ajudar com a sua mota a levar material para sete famílias a quem damos assistência. A Luísa dizia atrás de mim:
- Vais ser presa!
Tal como o primeiro sucesso não significa vitória, também o primeiro fracasso não significa derrota. A serenidade é a força dos fortes e a iniciativa faz parte do discernimento. Ele fechou o bloco devagar e indagou mais suavemente:
- Vocês fazem parte de algum grupo ou movimento?
Voltou o coro dos corvos. Bem ensaiadinhas numa só voz:
- Somos do Centro Juvenil de Quelimane!
- Mas então a Igreja ou o Padre não vos faculta um transporte? - Rimo-nos!
- Conhece o Padre Bernardino, aquele que calcorreia a cidade numa velha bicicleta? Pois é esse o responsável pelo Movimento. Está a ver sete moças em cima daquela bicicleta?
Finalmente humanizava-se:
- Claro que não e o que fazem é muito meritório…
Ficou algum tempo calado; depois lá terá pensado que estava a perder autoridade às mãos de umas miúdas e recuou na sua fraternidade:
- Vamos fazer assim, a menina leva agora três das suas amigas e depois vem buscar as outras três. Eu fico aqui com elas.
Não nos podíamos queixar… pelo menos o iceberg mostrara ter um pouco de coração e não nos penalizara. Tínhamos tido sorte! Quando regressei para levar as outras três, recomendou ainda:
- Façam por não se encontrarem comigo…
Ao que eu lhe respondi:
- Faça o senhor também por não nos ver, o que será fácil, o meu carro é o único Fiat vermelhinho que existe na cidade!
Riu-se:
- Já tinha notado!
E lá foi o Schwarzenegger à procura não de uma mas de duas multas, para compensar o momento em que fraquejou.
Nós ficamos a pensar que o Guarda não era tão mau como se constava; afinal, quem vê caras não vê corações, mesmo os que, a princípio, parecem nem existir!


5 comentários:

  1. Anónimo disse:
    Venho ao seu blogue muitas vezes e gosto do que escreve. Histórias com realismo e coração. Já pensou em publicar algum livro? Se o fizer depois quero saber onde o posso adquirir.
    De Moçambique, só conheço Lourenço Marques onde vivi alguns anos.Tenho imensas saudades. Da Zambézia ouvi falar das suas gentes... Continue. Um abraço.

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  2. Olá anónimo “Laurentino”

    Não sei se nasceu lá ou se viveu apenas alguns anos na bonita capital moçambicana. Fui muitas vezes passar férias a Lourenço Marques onde tinha grande parte da minha família. Obrigada por todas as palavras amigas. Venha sempre que quiser. Os zambezianos sabem sempre receber.

    Um abraço

    Graça

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  3. Olá conterrânea,

    Nascido(1959)e criado no Luabo.

    Já não "partia o coco" a rir há muito tempo - este episódio filmado, tinhamos um excelente filme cómico. Estou de acordo com o Laurentino, passar esta e outras experiências para um livro -Voçê tem o dom da escrita, força Zambeziana.
    Um Abraço
    C.Mário Ruas

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  4. Olá Luabense
    Que prazer receber a sua visita. Obrigada pelas palavras amigas e simpáticas. O livro, está a andar...aí vai-se rir a valer. Um abraço Graça.

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  5. Olá Graça Pereira,

    Esperamos ansiosos pelo livro...

    Um abraço
    CMRuas

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